Pesquisa da Unicamp revela: Falta mãe no país

Estudo mostra que 3,3 milhões de crianças e jovens não vivem com suas mães biológicas

qui, 27/03/2003 - 11h01 | Do Portal do Governo

Do Jornal da Unicamp
Por Paulo César Nascimento

O Brasil tem cerca de 3,3 milhões de crianças e adolescentes que não são criados por suas mães biológicas, revela o estudo ‘O Brasil das muitas mães’, realizado pela estatística Márcia Milena Pivatto Serra para sua tese de doutorado em demografia defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Ela tabulou dados sobre a situação do menor disponibilizados pelo IBGE até 1999 e descobriu que 7,1% dos jovens brasileiros até 14 anos viviam ou ainda vivem parte considerável, se não integral, da infância e adolescência com o pai, avós, pessoas fora do grupo consangüíneo ou mesmo em instituições assistenciais.

Alterações nos padrões familiares em conseqüência do aumento de divórcios, de uniões consensuais e da precocidade da maternidade estão entre os principais motivos pelos quais a criança deixa de morar com sua mãe. Outros, contudo, ainda que esporadicamente, contribuem para alimentar o fenômeno e não raro ganham notoriedade por conta de enredos patéticos.

Fecundidade precoce

Desenvolvido em parceria com o Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, o trabalho aborda o fenômeno demográfico da circulação de crianças, que é como a antropologia classifica toda transação na qual a responsabilidade de uma criança é transferida de um adulto a outro.

Bastante estudado em países com altas taxas de fecundidade, como a África (onde a circulação atinge até 20% da população infantil), o problema, que afeta indistintamente jovens dos dois sexos e não distingue classes sociais, é praticamente desconhecido da demografia brasileira, afirma a autora.

A pesquisa constata que os dois fatores com maior peso na circulação são os relacionados com o tipo de união e com a idade da mãe ao ter o filho. Ou seja, o número maior de uniões (ou a não união) e a precocidade com que a mãe teve o filho aumentam as chances de a criança circular.

Um expressivo universo de meninas começa sua vida reprodutiva muito cedo. Em relatório que mostra dados preocupantes sobre a gravidez na adolescência no Brasil, o Fundo de População da Organização das Nações Unidas (ONU) informa que para cada 1.000 mulheres brasileiras, de 15 a 19 anos, nascem 71 bebês, mesmo número registrado em toda a região da América Latina e do Caribe.

Segundo a pesquisadora, filhos gerados por mães com idade entre 10 e 19 anos apresentam probabilidade de estarem em circulação 13 vezes superior ao daqueles cujas mães os tiveram com 30 anos ou mais. O risco também ocorre quando a mãe é solteira.

Rede de sobrevivência

Márcia observa que a criança com menos de um ano de idade sai de casa pela primeira vez por causa de dificuldades financeiras da família (41% dos casos). Em idades superiores, o principal motivo relatado é a separação dos pais (32%).

Quando a separação conjugal vem acompanhada da penúria econômica, a mãe, principalmente nas classes menos favorecidas, aciona o que Márcia chama de rede de sobrevivência do filho, em que a colocação deste em outros lares surge como a solução mais acessível para a manutenção da prole.

A criança então é levada a morar com suas avós, tias, madrinhas e outras mulheres que se propõem a criá-la, e com as quais a mãe estará repartindo o peso financeiro do sustento do filho, principalmente entre os membros mais abastados de seu grupo de parentesco.

De acordo com ‘O Brasil das muitas mães’ as crianças, ao saírem de casa, ficam em 60% dos casos com parentes, principalmente avós. O pai, em 20% das situações, tende a ficar com os filhos mais velhos e do sexo masculino.

Quando, por algum motivo, a criança não consegue ser colocada na rede de parentesco, a alternativa de abrigá-la em lares não-consanguíneos e mesmo em instituições, temporariamente ou não, é adotada em outros 20% dos casos.

Ainda conforme o estudo, a circulação pode também ser utilizada para estabelecer alianças sociais, políticas e econômicas. Não é incomum, no interior do Brasil, que as famílias mais pobres estabeleçam uma relação clientelista com seus senhorios ou simplesmente com conhecidos mais prósperos, mandando uma criança em idade escolar para trabalhar como babá ou empregada doméstica em troca de casa, comida e algum tipo de instrução.

Um novo olhar

Somadas as indicações dos dados estatísticos aos novos padrões de uniões e fecundidades encontradas no país, Márcia aposta em um aumento da proporção de crianças em circulação para os próximos anos. ‘Não acredito numa diminuição do fenômeno, e as informações analisadas indicam, na verdade, o seu crescimento’, enfatiza, amparada por números das Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), do IBGE, que registraram um aumento na proporção de crianças em circulação na última década. O volume saltou de 3,1 milhões (6,5% dos jovens brasileiros até 14 anos) em 1996 para 3,3 milhões (7,1%), em 1999.

Por isso, a autora do estudo defende mudanças na lei sobre adoção, capazes de responder ao fenômeno de circulação de crianças e proporcionar garantias legais para aqueles que assumem a responsabilidade de criar filhos na ausência das genitoras. Para ela, o conceito formal de família não pode ficar restrito ao espaço físico de um mesmo teto, mas precisa ser estendido ao grupo de parentesco.

Nos Estados Unidos, lembra, é bastante comum a prática do fosterage, em que uma criança fica legalmente poucos dias ou semanas, ou até mesmo dois ou três anos, com pais adotivos, enquanto seus pais naturais resolvem problemas familiares que os impedem momentaneamente de criar as crianças.

‘Mães são estigmatizadas por conta de uma visão preconcebida do abandono infantil. O problema, porém, precisa começar a ser olhado como estratégia de sobrevivência que elas adotam pensando no bem-estar dos filhos, ainda que em outros lares’, afirma.

V.C.