Penitenciária de Sorocaba aposta na habilidade de reeducandos

Mais de 45% dos presos trabalham; atividades são desenvolvidas a partir de idéias dos próprios detentos

seg, 26/07/2004 - 11h03 | Do Portal do Governo

A Penitenciária Dr. Antônio de Souza Neto (PII) de Sorocaba abriga 1.168 presidiários. Cerca de 80% deles cometeram estupro (artigo 213 do Código Penal) ou atentado violento ao pudor (artigo 214). “É um preso diferenciado. O assaltante, normalmente, vem da marginalidade, sem destaque profissional. O estuprador costuma ter uma carreira. Teve desvio de conduta, mas tem alguma habilidade”, explica Hugo Berni Neto, diretor da PII.

É apostando na habilidade dos sentenciados que as atividades são desenvolvidas na penitenciária. Mais de 45% do contingente trabalham. Com um detalhe: a maioria das atividades desenvolvidas na cadeia partiu de idéias da própria população presidiária.

O diretor do presídio lembra que há dois anos um dos aprisionados disse que tinha nascido em Holambra (maior pólo produtor de mudas de plantas e flores do País) e sabia fazer enraizamento de plantas ornamentais. Acabou tendo a oportunidade de demonstrar seu trabalho e ainda ensinou outros reeducandos.

O negócio deu certo e surgiu o Projeto Semear. Numa área de 2,5 mil metros quadrados estão sendo cultivadas mais de 60 espécies de plantas ornamentais. Cerca de 40 mil mudas são produzidas todos os meses na penitenciária. Parte delas é doada para outras unidades penais e órgãos públicos. Com autorização judicial, três reeducandos fazem o trabalho de jardinagem no fórum da cidade. Outros 25 desenvolvem técnicas de estufa, ornamentação e jardinagem, procurando criar um ambiente mais agradável no espaço físico da unidade.

O sucesso foi tanto que a penitenciária recebeu convite para participar da 27ª Expo Verde, tradicional feira de plantas da região de Sorocaba, como Espaço Educativo. O sentenciado que iniciou o projeto, hoje em liberdade, costuma visitar o local para conferir a continuidade do seu trabalho.

Preso gerando emprego – Marcos Antonio de Souza, 38 anos, era empresário. Sustentava a esposa e seis filhos com a gráfica de sua propriedade. Condenado pelos artigos 213 e 214, começou a ver a família a passar por dificuldades financeiras. Buscou, em dezenas de livros e revistas, idéias para abrir novo negócio que pudesse comandar de dentro do cárcere. Depois de procurar apoio no Sebrae, decidiu que a melhor oportunidade seria fabricar ímãs de geladeira feitos em biscuit. Sua esposa abriu a empresa e Marcos produz, com mais 72 presos, cerca de mil ímãs por semana.

“O trabalho foi o que preservou minha identidade depois da prisão. Se não tivesse essa ocupação, eu seria outra pessoa. Quanto aos outros, peço para que tirem o trabalho como exemplo para seguir lá fora. Minha mãe sempre falou que eu deveria ter mil sonhos. Se eu realizasse um deles, seria feliz”, disse Marcos.

André Luiz Souza Dantas, 30, pretende seguir o conselho: “Meu trabalho é excelente. Aqui aprendi uma profissão. A sociedade pode ver que estamos trabalhando. Erramos e estamos buscando uma nova oportunidade. Ganhamos pela produção e posso dar sustento para minha esposa e duas filhas”. Além dos ímãs, preparam mil pacotes de massa de biscuit e, aproximadamente, 30 mil peças por semana. Os produtos são vendidos para lojistas da Rua 25 de Março, em São Paulo.

Exportando para o Japão – Há quatro anos, a empresa Bambu-Art fabrica espetinhos de churrasco dentro do presídio. Parte da produção é exportada para o Japão. A mão-de-obra é de presos, que recebem por comissão. Os únicos que não estão presos são os funcionários que trabalham no tratamento do bambu, num sítio próximo ao presídio. A empresa está construindo na penitenciária tanques de tratamento visando somente o trabalho dos detentos na produção. Os bambus chegam com cerca de 5 metros de altura. As motosserras utilizadas para cortá-los não têm permissão de entrar no presídio. Assim, os encarcerados autorizados por ordem judicial a exercer o trabalho extramuro deixam o bambu no tamanho certo para a fábrica. As sobras dos cortes são utilizadas pela turma do artesanato.

“O trabalho caminha bem, pois são os presos muito dedicados. O que se pede, eles fazem. Acho que o trabalho aqui é até melhor. Quando você entra, percebe que é diferente do que você imagina lá de fora”, diz Valentim Bezerra, gerente-geral da empresa.
Em outra empresa, carretéis de madeira são transformados em paletes, plataformas que facilitam o transporte e armazenamento de produtos nas indústrias.

Bolas e reciclagem – Além de 12 fábricas que funcionam dentro da penitenciária, outros sentenciados trabalham em oficinas. “A tarefa ajuda em tudo; na remição da pena e no dinheiro que ganho, que posso mandar para minha mulher e meus dois filhos. Não vejo o tempo passar, eu entro na oficina de costura de bolas às 8 horas da manhã e só saio às 4 da tarde. Quando sair da prisão, vou trabalhar dobrado para nunca mais voltar”, diz Carlos Alberto Rodrigues Filho, 29 anos, condenado a cumprir 10 anos pelo artigo 121 (homicídio).

“Se não tivesse essa função, ficaria parado. Seria bom se mais firmas oferecessem serviço para a gente. O dinheiro ajuda minha esposa e meus dois filhos. Quando sair, pretendo continuar do mesmo jeito, trabalhando”, completa José Paulo da Silva Lima, 29, preso há 6 anos, sentenciado pelo artigo 214, que antes era faxineiro.

Cirso de Euclides Rosa, 36 anos, era tratorista em Botucatu. Deverá cumprir 16 anos por “artigo de mulher”, conforme diz. Agora trabalha na oficina da Fundação Prof. Manoel Pedro Pimentel (Funap), que produz móveis e cadeiras de rodas. “Aqui faço tudo que aprendi. Além de ajudar no benefício, o trabalho nos reintegra na sociedade”, diz . Atualmente, está empenhado na fabricação de mobiliário para o Metrô e para a Assembléia Legislativa.

Outros 85 detentos trabalham na reciclagem de garrafas plásticas. São trituradas aproximadamente 80 toneladas de pet mensalmente para uma empresa de Sorocaba, que recupera material de outras cidades também.

Artesanato na cela – Nem todos conseguem operar nas fábricas. André Ferreira Loureano, 27 anos, detido pelo artigo 213, vai cumprir seis anos de reclusão e faz artesanato na cela. As peças produzidas são enviadas para a família vender. O dinheiro ajuda a sustentar a esposa e as duas filhas. “Faço porta-jóias, toalhas e barcos para minha mulher vender lá fora. Ocupa a mente e não fico pensando nas coisas do mundo. Quando sair, quero fazer alguns cursos. Sou cozinheiro sushi-man, mas ainda não sou formado. Aprendi a fazer trabalhos artesanais aqui dentro”, conta André, exibindo orgulhoso as toalhas que produziu. Preso há mais de um ano, estuda no presídio: “Quando estava fora, trabalhava 12 horas por dia e não tinha tempo para estudar”.

Na mesma cela está Raimundo Zito da Silva, 41 anos, sentenciado a mais de 16 anos pelo artigo 121. Lavrador em Minas Gerais, confecciona peças com papéis dobrados. A renda é pequena, serve apenas para seus gastos com produtos de higiene e limpeza. Não é suficiente para auxiliar esposa e quatro filhos. “O ofício distrai a mente e faz a gente esquecer da rua. Estou estudando, já fiz a 1ª e a 2ª séries aqui. Ler eu sei, não sei é escrever”, diz Raimundo. A cela que Raimundo e André ocupam chama à atenção não só pelo artesanato produzido, mas também pela música que invade os corredores do raio prisional.

O pedreiro Valdevino Ferreira dos Santos, 58 anos, toca acordeão muito bem. Faz faxina no presídio e tem-se dedicado aos estudos. Está na 4ª série e se esforça para aprender tocar violino. “Um dos meus quatro filhos toca violino. Aproveito esse tempo para aprender, pois Deus vai me ajudar e vou conseguir”, diz Valdevino, condenado (artigo 214) a 18 anos de cárcere.

Educação de qualidade – O presídio dispõe de cinco salas de aprendizagem. São 260 alunos que freqüentam a escola, divididos em dois períodos. É possível até esquecer que estão num presídio. Um sinal sonoro identifica o término de cada aula. Os estudantes obtiveram, em 2003, índice de aprovação de 88,2% no exame do MEC.

“Há muito respeito aqui dentro. Quando a pessoa começa a estudar, todos sabem que da grade para lá é cadeia; para cá, é escola como as outras fora do presídio”, sinaliza Luis Eduardo de Oliveira, subdiretor do núcleo de educação.

Um professor contratado pela Funap, uma estagiária e cinco monitores presos lecionam no núcleo. Como o perfil dos detentos de Sorocaba é diferenciado do de outras penitenciárias, há formados em Filosofia e Biologia, por exemplo. É o caso de Wilson Soares Baldin, 35 anos, preso há sete, condenado pelo artigo 121. Técnico em enfermagem, com licenciatura em Pedagogia, dá aulas de Português e Biologia para os outros sentenciados. Morou dois anos em Nova York e concluiu pós-graduação. Hoje ensina inglês para os funcionários da penitenciária.

“Temos aqui a oportunidade de elaborar nosso conteúdo, inovando o ensino que era limitado a pequenas apostilas. Passamos a nos equiparar com alunos de escolas públicas e particulares, com vídeos, livros e biblioteca. Podemos perceber a real carência dos reeducandos. É uma oportunidade para recuperar e livrar todos de seu passado”, disse Baldin.

Quanto mais você olha, menos você vê

Todas as habilidades dos presos são aproveitadas. Principalmente quando o talento agrada a todos. Presos, funcionários e familiares se divertem com as apresentações da dupla Alvino e Joel. Mágico e mímico se conheceram dentro da cadeia e criaram vários números.

Alvino Evaristo Rosa, 42 anos, como todo bom mágico, está sempre pronto para exibir seus truques. No bolso do uniforme ficam tampinhas, barbante e outros acessórios utilizados para distrair o público. Suas mãos ágeis fazem aparecer e desaparecer dezenas de coisas. “Presta atenção no que estou fazendo: quanto mais você olha, menos você vê”, brinca Alvino, que também é encarregado na fábrica de biscuit.

Com vasta experiência em circo e festas infantis, acabou sendo preso porque “tinha vício de comprar coisas”. Responde por 12 crimes de receptação e está condenado a 18 anos de reclusão. Conta que costumava adquirir pacotes de cigarros e aparelhos eletroeletrônicos para revender. “Aqui, temos oportunidade de trabalhar. Se quiser ir embora recuperado é só vir para cá. No meu caso, nem foi burrice, eu não sabia o que estava fazendo. É melhor viver na rua, trabalhando e comendo pão com manteiga do que ser excluído da sociedade. Quando sair, sei que serviço não faltará, posso fazer qualquer trabalho, como ajudar alguém a carpir um quintal”, frisa.

O mímico Joel da Silva Gonçalves, 28 anos, conta que chegou a ser considerado o primeiro maior mímico de rua do mundo e o terceiro como mímico de palco, num concurso realizado em Curitiba. Fez vários quadros na televisão onde os personagens seguiam pessoas nas ruas como sombras. Enquanto aguarda seu julgamento pelo artigo 213, o artista ensaia números de telepatia com Alvino. São capazes de “adivinhar” o número que a pessoa escreve num pedaço de papel. Ele também é equilibrista e tem ensinado alguns de seus números para o mágico.

“Acho que nossas apresentações são especiais. Acaba quebrando o tabu entre preso, direção e funcionário. Lá fora tem muito preconceito, por isso trabalho mais aqui. Tive a sorte de conhecer o Alvino e fizemos um show durante dois dias apenas para funcionários”, conta o mímico, que trabalha também na biblioteca da penitenciária. Acostumado com o sucesso, lembra com saudades do tempo em que aparecia nos jornais e na televisão e costumava receber cartas de fãs. “Será que dá para perguntar se alguém quer se corresponder comigo? Adoraria receber cartas”, questiona Joel, que procura notícias de um antigo parceiro de mímica.

Serviço – Quem quiser doar livros ou se corresponder com os sentenciados pode escrever para Avenida Dr. Antonio de Souza Neto, 100 – Aparecidinha – Sorocaba – CEP 18087-360.

Regina Amábile, da Agência Imprensa Oficial