Justiça: Itesp reconhece primeiro quilombo urbano do Brasil

Proposta do Itesp é de que seja titulado não só o território que já pertence aos quilombolas, mas também a área de nascente do córrego

seg, 22/11/2004 - 17h45 | Do Portal do Governo

Exposta em um mercado de escravos em Santos, em meados do século XIX, a jovem Emília é comprada por um fazendeiro de Itatiba, região de Campinas. Sua mãe já havia sido comprada por outro fazendeiro, que não quis levar as duas. Separada para sempre da mãe, Emília acabará se tornando a fundadora de uma comunidade onde até hoje as mulheres têm um papel tão destacado na organização social que não seria exagero falar em matriarcado. Essa comunidade é o sítio Brotas, em Itatiba, que no dia 18 de novembro passou a ser o primeiro quilombo urbano reconhecido no Brasil.

Ana Tereza Barbosa, 66 anos, ou ‘tia Aninha’, como é carinhosamente chamada por todos, ainda se lembra da bisavó. ‘Quando ela ia até a cidade, a gente ficava com medo de ficar sozinha e ia atrás. Ela ia a pé e a gente corria e não alcançava. E já tinha mais de 80 anos. Morreu com mais de 100’, conta.

Emília e o marido Isaac de Lima ganharam a liberdade após a morte do fazendeiro. A filha, Amélia, já havia nascido em liberdade, beneficiada pela Lei do Ventre Livre. A família foi morar no sítio Brotas, de propriedade do casal Rita e José Francisco Rodrigues, comerciantes que ajudavam escravos fugidos ou libertos. Desde aproximadamente 1700, o sítio Brotas já era um quilombo no sentido tradicional da palavra, servindo de refúgio a escravos que arriscavam até a vida para escapar dos grilhões de seus senhores.

Os donos do sítio fizeram a Emília e Isaac uma proposta: eles poderiam viver e trabalhar no local até que juntassem dinheiro para comprar as terras. Entre 1878 e 1885 eles conseguiram juntar o suficiente e a terra passou a pertencer ao casal e seus descendentes. O baú utilizado para guardar o dinheiro ainda pode ser visto na comunidade, assim como outras relíquias da época. ‘A gente costumava encontrar correntes e peças de ferro utilizadas para prender os escravos, mas não sabia que poderia ter um valor histórico’, conta Geni Barbosa, 63 anos, outra neta de Emília.

Amélia tornou-se a grande matriarca do quilombo Brotas. Seus filhos, netos e bisnetos não se cansam de contar histórias da ‘vó’ Amélia. De idéias avançadas para sua época, queria ser modista. Ela própria costurava suas roupas e a elegância com que se vestia pode ser conferida nas fotos preservadas pela comunidade.

‘Ela nos ensinou tudo’, conta tia Aninha. ‘Ela nos passou que, se a gente casasse e não desse certo, não tinha que agüentar marido. Aqui, mulher nunca apanhou de marido. Minha avó dizia um provérbio: ‘Não tenho barba na cara, não tenho cabelo no peito, mas o que um homem faz, eu faço do mesmo jeito.” Amélia morreu em 1976, também com mais de cem anos de idade.

Cultura

A riqueza cultural do quilombo impressionou a antropóloga Patrícia Scalli dos Santos e a geógrafa Rose Leine Bertaco Giacomini, da Fundação Instituto de Terras (Itesp), entidade vinculada à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania. Durante aproximadamente um ano, elas colheram depoimentos, percorreram o território da comunidade e pesquisaram documentos para elaborar o relatório técnico-científico que reconhece o sítio Brotas como remanescente de quilombo.

‘Brotas já era um quilombo antes mesmo da fundação de Itatiba. Eu até defendo a hipótese de que foram os quilombolas que fundaram a cidade’, argumenta Patrícia. Segundo ela, o município de Itatiba foi o segundo do Estado em número de escravos, perdendo apenas para a capital. E o preconceito contra os negros sempre foi muito forte na cidade.

Como não podiam freqüentar o clube dos brancos, os quilombolas criaram o seu próprio clube, o 7 de Setembro. A primeira escola de samba da cidade foi fundada pelos descendentes da ex-escrava Emília e também se chamava 7 de setembro. Nos anos 50, a ‘tia Lula’, uma das filhas de Amélia, ainda viva, criou um terreiro de umbanda no sítio. Misturada com elementos do Candomblé e do Catolicismo, a religião tem sido um traço marcante da vida cultural dos quilombolas e de sua relação com o território. As matas e nascentes da localidade são fundamentais para os rituais religiosos.

Quilombo urbano

Nos últimos anos, o crescimento urbano desordenado de Itatiba vem criando problemas para a comunidade, onde vivem hoje 32 famílias. Recentemente, a construção de um loteamento assoreou o córrego que corta o sítio Brotas, causando não só um impacto ambiental, mas também cultural. A proposta do Itesp é de que seja titulado não só o território que já pertence por direito de herança aos quilombolas, mas também a área de nascente do córrego.

Esse crescimento também fez com que o perímetro urbano englobasse o território do quilombo. Segundo a geógrafa Rose, é por isso que a comunidade é considerada o primeiro quilombo urbano oficialmente reconhecido no Brasil. Por ser uma área particular, a titulação depende agora do Governo Federal, por meio do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Os trabalhos de reconhecimento e titulação estão sendo acompanhados pelo Ministério Público Federal. A comunidade também contou com o apoio da organização não-governamental Fórum Pró-Cidadania, de Itatiba.

No dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o Itesp entregou à comunidade cópia do relatório técnico-científico. Ana Maria de Lima, bisneta da vó Amélia, sintetizou a importância do reconhecimento: ‘Antes, para a sociedade racista, nós éramos ‘aqueles negros’. Agora, somos quilombolas. E isso abre as portas para outras conquistas.’

O que são quilombos?

Quilombos são grupos negros que vivem predominantemente em áreas rurais. Atualmente, alguns estão mais próximos das áreas urbanas. Essas comunidades têm uma história de luta pela liberdade, desde que seus antepassados foram trazidos da África como escravos, e hoje lutam por um pedaço de terra onde possam viver de acordo com suas tradições.

Outra característica marcante é a ocupação do território de acordo com ligações de parentesco. Os moradores de comunidades quilombolas sempre fazem referência a um ancestral comum, que pode ser real ou imaginário (um personagem lendário, por exemplo), e que foi o primeiro a chegar naquelas terras.

Com o quilombo Brotas, já são 18 comunidades reconhecidas pelo Itesp no Estado de São Paulo, a maioria delas na região do Vale do Ribeira. São 13 comunidades distribuídas entre os municípios de Eldorado, Iporanga e Cananéia. Existem também quilombos em Itapeva, Salto de Pirapora, Capivari e Ubatuba.

Outras 19 comunidades aguardam o reconhecimento, que é feito por meio de relatório técnico-científico de cunho antropológico. Esse é o primeiro passo para a titulação do território, direito garantido pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Das comunidades reconhecidas pelo Itesp, cinco já receberam títulos de posse das terras, emitido pelo próprio governo do Estado. Essas comunidades estão localizadas em áreas devolutas estaduais. As demais, por ocuparem áreas particulares, dependem de arrecadação das terras por parte do Governo Federal.