Índios guaranis lutam para preservar sua cultura em São Paulo

Encontros, palestras, oficinas e um trabalho de piscicultura promovem o fortalecimento das tradições

ter, 19/04/2005 - 12h16 | Do Portal do Governo

‘As tradições são nossa fonte de energia’, diz Timóteo Verá Potyguá, cacique da Aldeia Indígena Tenonde Porã. À frente da comunidade guarani que reúne 120 famílias (cerca de 700 pessoas), às margens da represa Billings, em plena capital paulista, o índio de 37 anos luta para manter viva a cultura de seu povo no reduzido espaço de 26 hectares de terra, demarcado em 1987. Mas a proximidade com a rotina urbana e a influência dos meios de comunicação, principalmente a TV, cada vez mais presente nas aldeias, somadas às dificuldades encontradas para o exercício de atividades do modo de vida guarani, como a agricultura e a pesca, são ameaças constantes a esse objetivo.

O projeto Nhemboaty Nãnde Reko Ete i Pyguá (‘Fortalecer a Educação Tradicional Guarani’) surgiu a partir dessa preocupação, que não é só de Potyguá, mas de várias lideranças desse povo de cultura milenar. Iniciativa da Fundação Prefeito Faria Lima-Cepam, vinculada à Secretaria de Estado de Economia e Planejamento, ele abrange três propostas centrais: promover encontros entre os jovens e os representantes mais velhos (pajés, rezadores, mestres das artes e das manifestações culturais), para que seja fortalecido o diálogo sobre a cultura guarani e se estabeleçam acordos sobre as tradições que os mais novos querem aprender; registrar e publicar relatos dos mais velhos sobre o modo de vida tradicional no formato de cadernos de educação, CDs, vídeo e página na internet, a serem divulgados em todas as aldeias e incorporados às escolas indígenas como material didático; e estabelecer parâmetros para a redefinição do projeto de educação escolar guarani , que visem o equilíbrio entre o conteúdo das culturas indígena e não-indígena, além dos métodos formais próprios dessa etnia.

Segundo seu responsável técnico, o historiador Maurício Fonseca, do Cepam, a elaboração do projeto foi motivada pelo interesse do Governo do Estado em instituir uma política de atenção aos povos indígenas, inclusive para servir como piloto para outros Estados e outras etnias. Nesse intuito, em outubro de 2003 o órgão ganhou o Núcleo de Assuntos Indígenas (NAI) e, cerca de um ano depois, foram formados o Conselho Estadual dos Povos Indígenas e o Comitê Intersetorial de Assuntos Indígenas, associados à Secretaria Estadual de Economia e Planejamento. Ambos os colegiados, de caráter não-deliberativo, buscam participar da elaboração, acompanhamento e avaliação da política estadual de atenção aos povos indígenas.

Índio do século 21 – O pontapé inicial do trabalho foi dado em dezembro de 2002, no I Encontro Nacional de Educação Tradicional Guarani, que reuniu mais de 300 índios de 26 aldeias, entre líderes políticos e religiosos, professores, agentes comunitários de saúde, crianças e adolescentes. O evento foi registrado integralmente em áudio e vídeo.

De acordo com Fonseca, foi um encontro altamente representativo, o maior feito em 20 anos e, entre os assuntos abordados, ganhou destaque a importância da educação oral para os guaranis. ‘Tradicionalmente, esse povo passa seu conhecimento por meio da oralidade e não da escrita. Essa forma de ensino tem de ser utilizada nas escolas indígenas’, explica o historiador.

O cacique concorda sobre o mérito da iniciativa. ‘Trouxe reflexão sobre o nhande rekó (a forma de ser guarani). Passamos a divulgar que existimos e somos uma nação. Gravamos CDs com nossas canções, que causaram grande repercussão, e ganhamos o apoio da Unicef, porque o nosso trabalho é voltado para as nossas crianças’, conta Potyguá. ‘Lutamos para o índio viver inserido no século 21, mas sem perder sua cultura’, continua.

A partir daí, mais sete encontros regionais foram realizados, entre agosto de 2003 e janeiro de 2005. Oficinas de atividades tradicionais, como artesanato, plantio de alimentos típicos (milho, mandioca e batata-doce) e brincadeiras infantis, canto e dança, entre outras que já aconteciam em algumas aldeias, e algumas quase esquecidas, também ganharam atenção e passaram a ser divulgadas e organizadas nas reuniões, com o objetivo de serem fortalecidas.

Bons exemplos são as de manga (‘peteca’), que vai desde a confecção do objeto, com a palha do milho, até o jogo (diferente do nosso) e mbaravidja mbaravidja (‘o que é, o que é?’), bem freqüentes entre as brincadeiras.A de xondaró (‘guardião’), dança típica de proteção, é outra das mais realizadas.

Cadernos de educação – O 1º Encontro Nacional de Educação Tradicional Guarani rendeu ainda a gravação de 68 fitas VHS, das quais 33 foram selecionadas para serem transcritas e traduzidas. O trabalho objetiva a publicação do 1º Caderno de Educação Guarani , que será acompanhado de CD com trechos das falas dos mais velhos.

Na semana passada, iniciou-se a etapa da elaboração editorial. A equipe responsável é formada por quatro guaranis e três não-índios (uma antropóloga, uma especialista em tradução e um historiador). Fonseca informa que as principais preocupações do grupo são a fidelidade quanto ao conteúdo do material colhido. O conselho editorial inclui ainda dois mestres e duas lideranças indígenas. A execução do projeto está sendo financiada pelo Unicef.

Os depoimentos a serem transcritos, feitos na língua nativa, versam sobre vários temas, como a visão guarani de mundo, religião, educação, rituais, culinária, canto, dança, brincadeiras etc. A publicação (em torno de 150 páginas) deverá ficar pronta na primeira quinzena de julho. Terá um glossário guarani -português e ilustrações indígenas. Segundo Fonseca, o material será distribuído para todas as escolas guaranis do Estado de São Paulo e a idéia é negociar com o MEC para que sejam enviados para o Brasil todo.

O projeto Fortalecer a Educação Tradicional Guarani prossegue até 2007, com mais encontros agendados e, para o encerramento, está programada uma grande confraternização entre todas as aldeias participantes.

Um problema: a fome. Uma solução: os peixes

A professora Sônia Regina Pinheiro, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, começou a freqüentar as aldeias Tenonde Porá e Krukutu (ambas localizadas em Parelheiros) em 2000, para realizar um trabalho de controle da sarna de cães, que estava infectando as crianças. Reduzida a doença, a vivência no local despertou sua atenção para outro problema: a fome na aldeia.

Em busca de uma alternativa, lançou em 2003, em parceria com o Instituto de Pesca, um projeto para criação de peixes, utilizando dois açudes construídos pela empresa Furnas Centrais Elétricas nas reservas indígenas. ‘Nos reunimos com os próprios índios para resolver o que fazer e a decisão foi a criação de peixe, pois a atividade faz parte da tradição deles’, conta a coordenadora do projeto.

Para poder alcançar o objetivo, foi necessário preparar a água, considerada muito ácida para receber os peixes. O biólogo Rui de Almeida Dias, pesquisador aposentado do Instituto de Pesca, prestou consultoria voluntária ao grupo de três alunos (também voluntários) coordenado pela professora.

‘Fizemos o acerto da água com processo de alcalinização’, explica Dias. ‘Para criar peixe é necessário uma água de cor esverdeada, com plâncton, que faz parte da alimentação. Então, esperamos até a água alcançar a condição ideal’. Em seguida, cada açude foi povoado com 1,5 mil alevinos de tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus), peixe escolhido por ser resistente e de fácil manejo. As crianças fizeram o lançamento dos peixinhos de 1cm. Também foi realizado o treinamento dos índios para o manejo e, uma vez por mês, o grupo realiza monitoramento no local.

A iniciativa deu resultados apenas no açude da aldeia Krukutu. ‘Estamos avaliando o que aconteceu na Tenonde Porá. Vamos repetir o procedimento lá, com os conhecimentos que adquirimos aqui’, diz Sônia Pinheiro.

Ensinando e aprendendo – O guarani Nelson Karaí Miri, de 42 anos, assumiu a tarefa de cuidar da criação que vingou. ‘Aprendi a tratar dos peixes porque achei uma boa idéia’, diz, ocupado em alimentar os animais com a ração.

Para o graduando José Henrique Ferreira, quintanista e voluntário do projeto desde o início, os principais desafios do trabalho foram adquirir a confiança dos índios e elaborar um método de aplicabilidade de acordo com a tradição deles. ‘Mas os desafios foram também uma grande lição. Mais aprendi do que ensinei’, conta orgulhoso. O futuro veterinário também informa que a espécie escolhida é um peixe de criação barata e que fornece muita carne.

Segundo a equipe, o açude Krukutu já têm peixes de até 26 cm e uma população bem grande. ‘Já encontramos até filhotes da terceira geração’, conta Enrico Ortolani, do 3º ano da graduação. A avaliação da água feita pelo biólogo no monitoramento também confirma o sucesso da ação local: ‘Deu o máximo de oxigênio’, informa contente. ‘Quanto mais oxigênio, maiores ficam os peixes’, afirma.

Sônia Pinheiro ressalta a simplicidade do projeto. ‘É importante para mostrar que muitas vezes as soluções são simples. E destaca o baixo custo, de apenas R$ 6,5 mil. ‘A ração é barata, dá uma despesa média de R$ 32,00 por mês e, em contrapartida, a criação pode ser uma fonte permanente de proteína animal, de acordo com a tradição guarani ‘, conclui.

A coordenadora afirma que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) acompanha o projeto e estuda convidar outras faculdades de medicina veterinária para implantar iniciativas em todo o Brasil. Os resultados do trabalho da FMVZ serão apresentados hoje e amanhã no 5º Fórum Nacional de Defesa da Saúde da Criança Indígena, que acontece no Sesc (Av. Paulista, 119, Capital), a partir das 9 horas.

Simone de Marco
Da Agência Imprensa Oficial