Especial do D.O.: USP ensina catadores de lixo de São Bernardo a reciclar material coletado

Parceria com a prefeitura de São Bernardo do Campo retira 92 famílias do Lixão do Alvarenga

qua, 16/07/2003 - 14h11 | Do Portal do Governo

Da Agência Imprensa Oficial


Por Claudeci Martins

“A gente pegava tudo que dava para reaproveitar no Lixão do Alvarenga. Ficávamos o dia inteiro recolhendo os restos dos outros. Muitos trabalhavam à noite, no frio e na chuva para conseguir sobreviver do lixo. Ninguém usava luvas nem sapatos, e as crianças também ajudavam. Quando estávamos com fome, comíamos lá mesmo o que encontrávamos, sem nem lavar as mãos”, lembra a ex-catadora de lixo Francisca Maria Lima Araújo.

A reciclagem foi a solução encontrada pela prefeitura de São Bernardo do Campo para retirar 92 famílias do Lixão do Alvarenga – um dos maiores da América Latina, com 40 hectares de lixo urbano a céu aberto –, onde cerca de 200 crianças e adolescentes sobreviviam do que colhiam. Criado em 1998, o Programa Lixo e Cidadania é uma parceria com a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP), com a finalidade de promover cursos de reciclagem de lixo.

A iniciativa conseguiu colocar na escola as crianças que viviam entre detritos e ofereceu oportunidade de trabalho às famílias. Para substituir a catação, feita de forma degradante, criou-se um serviço de reciclagem organizado pela coleta seletiva. Hoje, eles são 77 associados e recebem até R$ 600 por mês, para uma jornada de trabalho das 6h30 às 18h30.

Francisca diz que o programa mudou a sua vida por completo. “Fiquei três anos recolhendo latinhas no lixão. Há dois estou na Casa e sou a vice-presidente da Associação Refazendo, que gerencia o Centro de Ecologia e Cidadania do bairro Assunção. Cuido das empresas que doam material e aprendi a fazer de tudo aqui. Nosso trabalho é digno. Somos uma grande família.”

Às margens da Billings

Localizado às margens da Represa Billings, na divisa de São Bernardo do Campo e Diadema, o Lixão do Alvarenga foi fechado em junho do ano passado. O terreno, de 750 mil m2, começou a ser usado como depósito de lixo, entulho e resíduos em 1972. Durante 30 anos, muitas famílias garantiram o seu sustento com os restos jogados por caminhões, a maioria clandestinos. Situado em área de proteção de mananciais, deverá ser transformado em parque ecológico.

O programa é vinculado ao Fórum Nacional Lixo & Cidadania – Criança no Lixo Nunca Mais, constituído por entidades internacionais como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), organizações não-governamentais e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

“O projeto foi feito para erradicar o trabalho infantil e a atividade de catação, tanto no lixão como nas ruas. Identificamos a situação das crianças vivendo dentro do lixo e verificamos que muitas nem tinham certidão de nascimento. Providenciamos os documentos, matrícula nas escolas e creches e acesso aos centros de saúde. Aos pais e mães oferecemos cursos de qualificação profissional. Todas as secretarias estão envolvidas na busca de soluções”, explica a assistente de diretoria da prefeitura de SBC, Aparecida de Souza Sobral.

Reciclar é a solução

A capacitação dos ex-catadores de lixo foi realizada graças às colaborações do Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Disque-Tecnologia da Poli-USP. As oficinas foram oferecidas nos dois Centros de Ecologia e Cidadania criados pela prefeitura em 200l e gerenciados pelos “garimpeiros” de rua, que se uniram em associações. A Associação Refazendo, no bairro da Assunção, abriga 50 ex-catadores, e a Associação Raio de Luz, na Vila Vivaldi, acolhe 27 pessoas que pegavam material nas ruas, os chamados “carrinheiros”.

Essas pessoas foram treinadas por uma equipe coordenada pelo professor Hélio Wiebeck, do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Poli-USP. Além dos cursos, foi feita pesquisa e criado laboratório de reciclagem com financiamento do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da Fapesp. Além de recuperar a dignidade dessa gente, o projeto quer também descobrir as melhores formas de aproveitamento dos produtos retirados do lixo.

“A coleta seletiva é uma das soluções para o lixo urbano porque reduz o volume de resíduos em aterros, lixões e incineradores; e a reciclagem ajuda a reduzir a extração de matérias-primas da natureza e, também, o consumo de energia. Apesar disso, nossa pesquisa constatou que apenas 135 prefeituras, das cinco mil existentes no País, adotam o sistema de coleta seletiva e reciclagem.”

As aulas foram dadas por bolsistas do projeto que tiveram, no começo, dificuldades em explicar o processo de reciclagem porque muitos dos ex-catadores de lixo eram analfabetos. O problema foi contornado com o uso de quadros e cores e pelo contato direto com os materiais recicláveis, trazidos pelos caminhões da prefeitura.

Trabalhando o lixo

Existem, na cidade, 209 “ecopontos”, conjuntos de quatro recipientes coloridos nos quais a população coloca, separadamente, papel, plástico, vidro e metais para serem recolhidos pelo serviço municipal. Nos dois Centros, o material recebido passa pela triagem, tratamento, trituração ou prensa. Depois, o produto valorizado é acondicionado e revendido às indústrias de reciclagem, gerando trabalho e renda aos que aderiram ao programa.
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“No caso de plásticos, por exemplo, os catadores aprenderam como reconhecer visualmente diferentes tipos de plásticos e separá-los. Dessa forma, agrega-se valor ao produto na hora da venda, pois o plástico vendido sem a separação possui menor valor de mercado”, explica Wiebeck.

“Aprendi a identificar, separar e preparar o material reciclável para ser comercializado. Participei de todos os cursos oferecidos e tenho 20 diplomas. Se precisar, posso pintar, depilar, costurar, fazer unha e cabelo. Meus dois filhos estão estudando e também aprenderam várias profissões. Sinto orgulho de trabalhar aqui e saber que as crianças estão com a barriga cheia e limpinhas”, afirma Francisca , que conhece todos os colegas e sabe quais são as dificuldades enfrentadas por eles.

A história de Francisca se assemelha a de muitos outros, como o ex-carpinteiro Nilo Isabel da Costa, que depois de trabalhar vários anos numa empresa foi demitido por causa da idade e passou a viver do lixo do Alvarenga. Agora, com 54 anos, trabalha separando e quebrando vidro na Associação Refazendo. Ambos estão na associação desde a sua criação. Ele recebe R$ 300,00 por mês e seus quatro filhos estão na escola.

“Fiz o curso de reciclagem e aprendi a aproveitar quase tudo. Quando tem algo aproveitável, trago para o Centro. Latas de óleo e detergente, vidros. Tudo serve. Não desperdiço nada. Também tenho diploma de eletricista, mas ninguém quer me contratar porque me acham velho demais para trabalhar.”

Seu colega Pedro Ferreira dos Santos, que trabalha na prensa, comenta: “Nossa vida melhorou. Aqui trabalhamos protegidos do sol e da chuva, com luvas e equipamentos de segurança. Além disso, temos cozinha, banheiro, acompanhamento de uma assistente social e professora”.

Em benefício das crianças

Rosilene Alves de Oliveira começou a ir para o Alvarenga quando tinha oito anos. Por quase 15 anos tudo que entrava em sua casa provinha dos restos garimpados no lixão. Diversas vezes trabalhou à noite e tinha de levar sua filha de nove meses junto. Era comum as crianças pegarem diarréia e ficar doentes porque os alimentos estavam vencidos, e ter queimaduras com os produtos químicos. Por não ser alfabetizada, aprendeu o processo de reciclagem pelo tato e pelo visual.

Hoje tem cinco filhos, recebe salário de R$ 600,00 e já sabe escrever o nome. Está tendo aula com uma professora voluntária que leciona na biblioteca do Centro. São duas turmas: uma para os analfabetos e outra avançada que ensina até a quarta série do ensino fundamental. “Meu filhos não perambulam mais em meio a latas velhas, papel e sujeira. Os pequenos estão na creche, os maiores na escola da rede pública. Posso sonhar com um futuro para eles.”

Maria do Carmo Miranda do Nascimento não sabe dizer quantos anos viveu no lixão junto com seus quatro filhos. Hoje eles estão na escola e participaram de todos os programas complementares à escola promovidos pela prefeitura. A filha Joelcimara Miranda do Nascimento recebeu a medalha comemorativa dos 100 anos da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), símbolo do trabalho desenvolvido pelo projeto Lixo e Cidadania em benefício das crianças catadoras de lixo.

O prêmio foi entregue em cerimônia realizada em 7 de abril, Dia Mundial da Saúde, com a presença do presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, o representante da Opas no Brasil, o governador Geraldo Alckmin e outras autoridades.

Em busca de colaboradores

Francisca tem, na ponta da língua, a solução para tornar ainda melhor o Programa Lixo e Cidadania: “Só é preciso aumentar a quantidade de material. O que recebemos dos ecopontos e das empresas e condomínios parceiros não é suficiente nem para aplicar tudo o que aprendemos com o curso de reciclagem da USP. Nosso objetivo é contratar 100 pessoas para trabalhar aqui na Associação Refazendo e abrir mais centros em outros lugares. Para isso, precisamos de mais matéria-prima reciclável”.

Apenas três condomínios e meia dúzia de empresas participam do programa. Um dos estabelecimentos, a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), implantou a coleta seletiva em seu câmpus. Outro parceiro é a SBCTrans, concessionária do transporte público da cidade, que instalou, em 1,5 mil pontos de ônibus, dois recipientes – um para lixo comum e outro para materiais recicláveis –, a fim de incentivar a coleta e divulgar o programa.

Embora os centros tenham capacidade para 80 trabalhadores, a quantidade de lixo recolhido nos ecopontos, edifícios residenciais e empresas é insuficiente para garantir renda a novos associados.

(LRK)