Especial do D.O.: Transplantes crescem em São Paulo, mas ainda há 18 mil pacientes na fila

Estado de São Paulo avançou muito nesta área; o problema é conseguir doadores

qui, 22/01/2004 - 10h23 | Do Portal do Governo

O número de transplantes de órgãos no Estado de São Paulo em 2003 cresceu mais de 16% em relação a 2002: foram 1.141 implantes de coração, rim, fígado, pâncreas e pulmão ante 983 no ano anterior. De acordo com a Secretaria Estadual da Saúde, receberam implante de tecido (córnea) no ano passado 3.181 pessoas, enquanto em 2002 este número ficou em 2.707, representando um aumento de 17,5%.

É um crescimento considerável, levando em conta as dificuldades para fechar o processo que envolve um transplante, desde a localização de doador, passando pela autorização da família e a cirurgia. Isso tudo em algumas horas, pois cada órgão tem um tempo máximo em que pode ser aproveitado num receptor.

No País, há mais de 56 mil pessoas esperando um órgão, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Somente no Estado, de acordo com a Secretaria da Saúde, a fila de receptores ultrapassa os 18 mil pacientes. A ABTO informa em seu site (www.abto.org.br) que há mais de 400 equipes habilitadas a realizar transplantes. O maior problema mesmo é a captação dos órgãos, pois o Ministério da Saúde cobre os custos das cirurgias. A de fígado é a mais cara: R$ 52 mil. A de coração custa em média R$ 22 mil; de pâncreas, R$ 14 mil; rim+pâncreas, R$ 26 mil; pulmão, R$ 37 mil; e córnea, R$ 379.

Central de Transplantes

Em São Paulo, a Central de Transplantes (www.saude.sp.gov.br) é o setor da Secretaria da Saúde responsável pelo recebimento das inscrições e armazenamento de dados dos receptores. Também recebe informações sobre doadores, realizando a seleção de pacientes, e cuida da distribuição de órgãos de doador cadáver.

Para se tornar um doador, é necessário deixar esse desejo muito claro em vida, pois um órgão só pode ser retirado com autorização da família. A legislação que permitia tornar-se doador com um aviso nos documentos foi revogada. Hoje só existe a doação consentida, sempre com autorização dos parentes.

O médico Luiz Augusto Pereira, coordenador da Central de Transplantes, conta que o setor gerencia e cuida do banco de dados de todos os pacientes que aguardam transplante e é responsável, quando há doador, pela seleção dos pacientes compatíveis e pela distribuição dos órgãos. “Fazemos a busca de doador, a abordagem da família, a execução de exames, o acompanhamento do diagnóstico da morte. Diversos exames do doador são feitos por hospitais como o Hospital das Clínicas, a Santa Casa, a Escola Paulista de Medicina e o Dante Pazzanese. No interior, temos seis regiões de captação, em Campinas, Sorocaba, Marília, Botucatu, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto.”

O transplante só ocorre quando o doador tem morte encefálica. Ou seja, o cérebro sofreu lesão irreversível, mas os órgãos ainda funcionam, o coração ainda bate. “A Central só gerencia doações advindas de cadáver, não gerencia entre vivos, como entre irmãos, pais e filhos, por exemplo, de medula ou órgãos duplos. Nestes casos não há fila. Quando uma família doa um órgão, entendemos que é para o Estado e aí gerenciamos. Os pacientes inscritos no programa de transplante têm acesso no site da secretaria a um miniprontuário com todos os seus dados”, explica o dr. Pereira.

Fila de espera

A captação de órgãos é a parte mais difícil, pois os familiares, geralmente, estão passando por uma situação de abalo emocional. “Como o órgão sólido precisa ser retirado com o coração ainda batendo, apesar da morte encefálica, fica difícil conseguir o doador. Essas mortes são repentinas, ocorrem em acidentes. É um momento difícil, por isso temos negativa familiar em torno de 40% a 50%. Só entre 20% e 25% dos casos notificados acabam se tornando doadores, pois uma parte é perdida porque o coração pára de bater antes de terminar o processo e outra porque clinicamente o doador não oferece condições de ter os órgãos reutilizados”, conta o dr. Pereira.

Quem deve inscrever o paciente como potencial receptor é o médico encarregado de seu tratamento. O receptor entra numa fila de espera em que seus dados serão cruzados com os de um possível doador e, havendo as compatibilidades necessárias, poderá receber o órgão. Não basta apenas ter mais tempo de espera, pois há muitas variantes para que a operação seja executada.

Para exemplificar, o dr. Pereira conta o caso recente do ator Norton Nascimento, que entrou na lista em urgência e rapidamente recebeu um coração novo. “Ele era um paciente de um grupo de 15 com prioridade. Estava na UTI, com ventilação mecânica, em estado grave. Havia mais dois pacientes nas mesmas condições que ele. Um precisava de transplante duplo, coração mais rim, e o doador era apenas de coração. O outro estava sem condições de sofrer a cirurgia e precisava de doador até 100 quilos. Este tinha 110. Como Norton não tinha restrições quanto àquele doador pôde receber o órgão, apesar de ser o mais novo na lista. O paciente do transplante duplo foi operado na semana seguinte. Em 2003, outros 78 pacientes foram priorizados e destes 43 foram transplantados nas mesmas condições de Norton.”

Transporte aéreo e rodoviário

A estrutura que envolve um transplante é imensa. As equipes médicas têm pelo menos seis pessoas, há o pessoal da Central, o da captação, da notificação, enfim, pelo menos uma centena de pessoas é acionada para que um órgão chegue ao receptor.

De acordo com o dr. Pereira, coração tem de ser implantado em no máximo quatro horas depois de retirados. O fígado dura até 12 horas, entre retirado e transplantado, o pâncreas, 12 horas, e o rim mais de 24 horas, podendo chegar a 30 horas. “Podemos retirar um rim aqui em São Paulo e mandá-lo para outra cidade no Estado de carro, por exemplo. Mas coração precisa de transporte rápido. Temos a colaboração da PM com seus helicópteros, e também da FAB com seus jatos.”

Cirurgias de rotina

O dr. Jarbas Dinkhuysen, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV) e médico-chefe da seção médica de transplantes do Dante Pazzanese, já fez mais de 150 transplantes de coração e conta que hoje a cirurgia é de rotina. “Uma cirurgia não passa de três horas. As primeiras eram mais complexas, levavam entre cinco e seis horas.”

Segundo o médico, a maior evolução foi no que se refere aos imunossupressores, as drogas que evitam a rejeição do órgão. “Elas eram muito genéricas, mas hoje se aplicam exatamente ao perfil do paciente.” De rotina e segura. A sobrevida nos transplantes de coração tem bons índices: 78% chegam a dois anos, 70% a cinco anos, e entre 53% e 54% a dez anos. “Hoje, na média, em 15 dias o paciente está em casa de coração novo”, diz o dr. Dinkhuysen.

Bem menos comum é o transplante de pulmão. No ano passado, só foram realizados 11 transplantes em São Paulo “O pulmão é mais suscetível a infecções por estar em contato com o exterior. Então o doador tem de estar em perfeitas condições”, explica o dr. Noedir Stolf, professor de cirurgia torácica e cardiovascular e chefe do programa de transplante do Incor. O pulmão deve ser implantado em até seis horas depois de retirado. Segundo estatísticas internacionais, a sobrevida chega a 70% no primeiro ano, a 60% em três anos, e a 40% em cinco anos.

O professor-chefe do serviço de urologia e transplante renal e de pâncreas do Hospital das Clínicas, dr. Sami Arap, diz que sua equipe fez mais de 3,5 mil transplantes de rim. A cirurgia não passa de três a quatro horas. “Em adultos a cirurgia é mais fácil porque há mais espaço para alojar o rim, condições que não são encontradas num transplante em criança.”

O dr. Arap diz que o índice de sobrevida é alto: de 85% a 90% sobrevivem até dois anos depois do transplante. “É nesse período que podem ocorrer problemas. Depois disso, não.”

Mutirão da córnea

A Secretaria de Saúde iniciou na primeira semana de janeiro projeto para elevar em mais de 60% a quantidade de transplantes de córnea no Estado. Quarenta funcionários de 15 hospitais estaduais – Organizações Sociais de Saúde, 13 na Grande São Paulo e dois no interior –, estão em treinamento até março para captação do órgão e abordagem a familiares. Hoje, há apenas cinco locais na capital com profissionais que executam essas atividades e o projeto pretende captar 2 mil córneas a mais neste ano.

Segundo o dr. Pereira, o projeto vai capacitar funcionários para que façam a abordagem familiar dentro do hospital e realizem a retirada do globo ocular e o entregue num dos bancos de olhos. O funcionário deve conhecer bem o processo do transplante e detalhá-lo aos familiares. “Precisa saber de todas as etapas do processo, explicar que a retirada não causa mutilação, que há mais de 5 mil pessoas na espera, enfim, dar todas as informações para a família.”

A córnea tem de ser tirada até seis horas depois da parada cardíaca. Quanto antes for obtido o consentimento, maiores serão as chances de aproveitamento em outra pessoa.

No tempo dos pioneiros

O primeiro transplante de coração do continente foi realizado no dia 26 de maio de 1968 pelo médico Euryclides de Jesus Zerbini no Hospital das Clínicas, em São Paulo, comandando uma equipe de 71 pessoas. Além de inédita na América do Sul, foi a 17a realizada no mundo. A primeira citada oficialmente ocorreu em 4 de dezembro de 1967, executada pelo cirurgião sul-africano Christian Barnard.

Naquele domingo de maio de 1968, às 7h53 começou a bater no peito do mato-grossense João Ferreira da Cunha, conhecido como João Boiadeiro, 23 anos, o coração do alagoano Luís Ferreira de Barros, que deu entrada no PS do HC na noite anterior com o crânio esfacelado, em coma profundo, causado por atropelamento.

O fato foi exaustivamente coberto pela mídia, o governador Abreu Sodré estava o tempo todo em contato com os médicos, havia até guarda de gala de prontidão no hospital e, assim que a cirurgia terminou, o governador mandou telegrama oficial ao presidente Costa e Silva, dando conta do sucesso do transplante.

Foram três semanas em que o coração do País bateu junto com o de João Boiadeiro.

Tecnicamente foi uma operação perfeita e teve uma característica diferente das 16 anteriores: contrariando a técnica de Barnard, o coração de Luís não foi resfriado durante a transferência de um corpo para o outro. Ele foi mantido em temperatura normal, irrigado por máquina, para proteger o metabolismo cardíaco.

Mas a partir do 22° dia do transplante, a rejeição passou a ameaçar a vida de João. As equipes médicas lutaram para manter seu novo coração, mas em 22 de junho foi anunciada a morte de João.

Nascido em 1912 em Guaratinguetá, o dr. Zerbini morreu no Incor, em São Paulo, em outubro de 1993 depois de operado por causa de uma lesão tumoral (bulbar).

Primeiro transplante

Não foi, porém, o dr. Zerbini o primeiro. O registro do primeiro transplante de órgão sólido no País (rim) pertence ao médico Geraldo de Campos Freire, também realizado no Hospital das Clínicas, em 21 de janeiro de 1965, três anos antes de o dr. Zerbini ser lançado à notoriedade com o transplante cardíaco.

No mesmo dia em que o dr. Zerbini fazia o transplante em João Boiadeiro, a equipe do dr. Freire aproveitava o rim do mesmo doador para transplantá-lo em Mercedes Seudeiro Leme. Uma cirurgia que durou pouco mais de três horas. Era o transplante de rim número 24 no Brasil.

Um infarto, e Hercília entra na fila

Passos apertados e rosto com uma sombra de aflição pelos corredores do hospital Dante Pazzanese. Hercília Navarro, dona-de-casa, 54 anos, cinco filhos, ex-vendedora, teve infarto, três paradas cardíacas, e foi encaminhada como candidata a receber um novo coração.

“Não vejo a hora de fazer.” Há dois anos ela passa pelo processo de entrada na fila de receptores. Até a primeira semana de janeiro, faltavam ainda a entrevista com o médico responsável e uma visita à sua residência. “Os remédios dão a falsa impressão de que você vai melhorar, mas não adianta. Aqui no hospital já vi muita gente entrar quase morrendo e sair andando feliz da vida, normal”, fala resignada Hercília.

A dona-de-casa conta que sua vida piorou muito depois do infarto. “Não tenho mais vida própria, deixei de trabalhar, saía bem cedo e só voltava à noite, e agora às vezes não tenho forças para cozinhar ou para abaixar repentinamente. Hoje nem banho posso tomar sozinha”.

Hercília tem esperança de que logo estará na fila e torce para que todos que estão antes dela consigam arrumar o coração. O que a deixa triste é a falta de interesse das famílias de doadores em ajudar quem espera um transplante. “A maioria enterra seus mortos e esquece que eles poderiam salvar outras pessoas. É uma pena.”

Depois da cirurgia, Aparecido é um novo homem

José Aparecido Banhara, 51 anos, casado, três filhas, era caseiro num sítio e passou boa parte da vida no trabalho pesado da roça, perto dos animais, alimentação farta. Isso tudo até descobrir que tinha o Mal de Chagas e ser recomendado para transplante. Em janeiro de 2003 recebeu um novo coração. “Fui operado quase em coma, muito mal, peguei uma infecção em seguida e só melhorei depois de seis meses. Agora, está tudo normal.”

De imediato, a tristeza em abandonar a vida que mais gostava no campo mas também a clareza de saber que somente a cirurgia poderia prolongar sua vida. “Hoje me sinto como um homem de 30, 35 anos, na plenitude da vida”, conta José Aparecido, sem disfarçar a alegria na voz. O compromisso do dia era apenas ir ao posto de saúde para pegar a medicação contra a rejeição. “Essa não pode falhar, é preciso tomar o resto da vida”.

A dieta foi mais rígida no início, mas não é isso que o incomoda: “Sei que preciso fazer exercício, mas confesso que estou meio preguiçoso. Fiz a operação com 50 quilos e hoje peso 78”.

Ainda não é chamado de gordo mas, diante da pressão da família e da gozação dos amigos, promete se emendar: “Afinal, aqui dentro do meu peito está batendo o coração de uma moça de 18 anos”, diz esboçando uma risadinha.

O primeiro transplante humano ocorreu em 23 de dezembro de 1954, em Boston (EUA). O cirurgião Joseph Murray fez o implante de rim entre irmãos gêmeos idênticos, que morreram alguns dias depois por causa da rejeição.

O dr. Christian Barnard, pioneiro em transplantes de coração, morreu em 2 de setembro de 2001, aos 78 anos, de ataque cardíaco.

Transplantes realizados no Estado

1998 1999 2000 2001 2002 2003
Coração 58 72 72 72 72 95
Fígado 160 190 234 242 242 289
Pâncreas 2 7 42 80 94 99
Pulmão – – – – 6 11
Rim 375 457 546 553 501 567
Pâncreas+rim – – – – 61 75
Fígado+rim – – – – 5 3
Coração+rim – – – – 1 2
Córnea – – 1.331 2.502 2.707 3.181

Total 595 726 894 947 982 1.141

Lista de espera em SP
Coração 64
Córnea 5.116
Fígado 2.926
Pâncreas 104
Pulmão 16
Rim 10.142
Pâncreas+rim 237
Total 18.605

Dados da Secretaria da Saúde

Sílvio Nascimento, especial para a Agência Imprensa Oficial