Especial do D.O.: Poupatempo São Bernardo promove oficina de bordado coletivo

Experiência promove a auto-estima e sociabilização das participantes

ter, 29/07/2003 - 11h32 | Do Portal do Governo

Por Inês Pereira


Especial para a Agência Imprensa Oficial

Enquanto os cerca de 700 funcionários do Poupatempo São Bernardo desatavam os nós burocráticos da população local, outros nós eram desfeitos ou, porque não, estrategicamente amarrados. Conduzida pela socióloga Valdirene Ferreira Gomes, a oficina de bordado integrativo, que é um trabalho feito em conjunto, teceu paisagens, flores, peixes, casas, rostos. As mulheres, na maioria atuantes em suas comunidades, alegres e, ao mesmo tempo concentradas, viveram a nova experiência do bordar, ainda que já tivessem a habilidade. ‘Deixei as minhas tarefas (casa, filhos, netos) para vir aqui e estou gostando demais. Principalmente da idéia de várias pessoas, juntas, realizarem um trabalho. Vou procurar transmitir a experiência que estou vivendo aqui para outras pessoas’, conta Leonildes Pereira de Oliveira.

A satisfação com a descoberta de uma nova habilidade encantou a atendente Juliane de Cássia D. Nogueira, de 20 anos. ‘Fui chamada para participar por ser funcionária do Poupatempo. Mas o que começou como uma tarefa me trouxe um enorme prazer. Nunca tinha pregado um botão, e já estou aprendendo a bordar. Acalma, distrai e concentra.’ A mesma empolgação é partilhada por Renata Souza da Silva, uma menina de 9 anos: ‘Nem acredito que estou aqui há quase quatro horas!’

‘Trabalhamos com o pressuposto de que não há certo ou errado, bonito ou feio. O que importa é que aquele bordado traga um pouco da pessoa. Muito mais do que técnica, ela precisa dar um mergulho em si mesma, na sua realidade, nos seus sentimentos e lembranças, para escolher a imagem que irá bordar’, explica Valdirene.

O bordado integrativo é realizado coletivamente, mas tem início na experiência individual. Cada desenho expressa, nas entrelinhas, sonhos, desejos, esperanças, angústias, decepções e a relação da pessoa com o mundo. Quando as partes se somam formando um grande e único painel, passam a mostrar, também, o conteúdo social e cultural do universo de que fazem parte. Ao criar a oficina, a socióloga uniu sua experiência acadêmica da pós-graduação em arte integrativa, que coloca no processo artístico as questões individuais, a práticas milenares da cultura indiana, em que as mulheres, tradicionalmente, contam as histórias das suas vidas nos bordados que fazem. “Aqui no Brasil, as bordadeiras vêm tecendo a nossa cultura desde os tempos da colonização’, acrescenta Valdirene.

Ela acredita que o contato com o presente e o passado possibilita que as pessoas construam um futuro fortalecido, mais verdadeiro e consciente. ‘É um momento precioso para vítimas da opressão e da violência, excluídas de uma vida digna e sem perspectiva. Essas pessoas têm a rara oportunidade de pôr para fora as suas angústias e os seus anseios. Resgatam a sua história pessoal, suas lembranças e seus sentimentos. Por isso, esse trabalho é voltado especialmente para comunidades carentes.’

Auto-estima e sociabilização entrelaçadas

Ao fazer um bordado coletivo, é preciso respeitar o espaço do outro, aprender a compor com o outro, e isso é um treino de sociabilização. ‘Nas relações sociais, é preciso saber quem é você e quem é o outro, e o bordado mostra a posição que cada um ocupa no trabalho coletivo, até onde pode ir, onde o outro está invadindo. É o aprender a se colocar’, analisa Valdirene. ‘Eu estava trabalhando com as integrantes da União de Mulheres — ONG que dá assistência psicológica a mulheres vítimas de violência — no acabamento de um grande painel bordado. A mim coube fazer um ninho de passarinhos. Escolhi várias cores para bordar os ovos. Cada vez que ia separar a linha, notava que uma colega bordadeira a tirava de perto. Fez isso várias vezes, até que perguntei a razão de tal atitude. ‘Porque não existe ovo colorido’, ela respondeu. ‘Mas os meus são’, retruquei. Foi um momento de enfrentamento sutil, um exercício para a vida de nós todas’, recorda a socióloga.

O mesmo acontece com os sentimentos, que afloram à medida que as linhas coloridas formam, ponto a ponto, a imagem escolhida. Surgem casas, símbolos religiosos, sorrisos ou lágrimas, enfim, parte da história individual de cada pessoa. A socióloga conta que, durante oficina realizada no Poupatempo Santo Amaro, uma mãe, acompanhada de duas filhas adotivas, ambas HIV positivas, escolheu uma frase para bordar: Só o amor supera tudo. Ao finalizá-la, chorou muito e acabou por emocionar todo o grupo. No grupo Terceira Idade Amor Perfeito, dona Maria da Cruz, uma senhora de 77 anos, concluiu a sua vivência feliz com uma frase curta: Nunca é tarde para aprender. Em outra oficina, uma mulher havia estranhamente dividido o seu trabalho em duas partes: uma com a imagem de uma casa, outra com a de sete crianças. Soube-se depois que tinha perdido a casa em um incêndio. No final do bordado coletivo, alguns meses depois, ela juntou os panos com um bordado. Havia, finalmente, conquistado outra moradia’, relata a socióloga.

Agentes multiplicadores

Passar adiante conhecimento e experiências pelas mãos de representantes de comunidades e movimentos populares é o grande objetivo de Valdirene. ‘É uma forma de garantir que cada vez mais pessoas participem desse trabalho e encontrem nele um canal de auto-conhecimento, integração e até como fonte de renda alternativa. Por isso, sempre conto com o compromisso das pessoas que participam das oficinas de ensinar o bordado para a comunidade’, diz ela, que já formou 25 grupos de multiplicadores em um ano e meio. Foi o caso de várias participantes do grupo em São Bernardo.

‘Trabalho com os moradores de rua da região e pretendo desenvolver esse trabalho com os grupos. Será mais um instrumento para ajudá-los a resgatar valores e identificar os próprios sentimentos nesse momento em que estão tão vulneráveis e desprovidos de segurança’, avalia a psicóloga Sônia Maria Ferreira Zago.

Edinair Matos Gama também levará o bordado integrativo para mulheres carentes e vítimas de violência das comunidades do ABC. ‘O trabalho que está sendo feito aqui, nessa oficina, vai ser muito importante para a mulher que sofreu uma violência. Muitas vezes, ela não sabe ou tem dificuldade de falar, de se abrir. Mas, no pedaço de pano poderá conseguir abrir seu coração para se sentir melhor, para se querer bem. É uma forma de olhar para frente e ver uma janela. Sem falar que está sendo muito gratificante contar a minha história, mostrar a minha oca, os peixes, a vida no Pará’, revela Edinair, nascida na tribo Gorotiré. ‘Sou a oitava de 17 filhos. Nossa tribo foi invadida e estou contando um pouco disso no meu bordado.’

Segundo Valdirene, qualquer pessoa pode participar da oficina. E isso torna muito simples ser um multiplicador. Basta querer. Muitas se surpreendem com o resultado, mal acreditam que foram capazes de produzir com as próprias mãos um trabalho tão bonito e colorido, e se orgulham da sua obra. Ela ensina o ponto alinhavo, básico, que é o ponto indiano. Depois, todas aprendem a trabalhar com ponto cheio, amarração, rococó, ponto corrente. E aquelas que conhecem outras técnicas de bordado ensinam para o resto do grupo.

Sentimentos bordados em exposição

A exposição Entre linhas e cores: Tecendo a nossa história – Canto do povo de um lugar é resultado do trabalho das agentes multiplicadoras e conta com a participação e o esforço de 140 pessoas, todas integrantes de movimentos populares. ‘Quando as bordadeiras transmitem o que aprenderam às suas comunidades, montam um painel coletivo resultante das oficinas, que se junta à exposição’, descreve Valdirene. Reunindo atualmente trabalhos feitos por nove entidades (Movimento de Moradia do Centro, União de Mulheres de São Paulo, Associação Beneficente e Cultural Pena Branca, Centro Social Marista São Marcelino Champagnat, Associação Grupo de Mães Novo Amanhecer, Casa Abrigo Campo Limpo, Centro de Convivência e Cooperativa Parque Raul Seixas, Grupo 3ª Idade Amor Perfeito, Morada Norte), a exposição já percorreu os postos do Poupatempo em Itaquera, Santo Amaro e São Bernardo.