Especial do D.O.: Memorial conta a história dos imigrantes que ajudaram a construir São Paulo

Pela hospedaria passaram três milhões de pessoas em busca de trabalho, terras e melhores condições de vida

ter, 27/01/2004 - 10h02 | Do Portal do Governo

Ao desembarcar no Porto de Santos, os imigrantes trouxeram muito mais que braços para trabalhar nas lavouras de café e na nascente indústria paulista. Os povos pertencentes às mais de 70 nacionalidades vieram com o sonho de “fazer a América” e acabaram por construir a história e a cultura brasileiras. Deles, o Brasil herdou sobrenomes, idiomas, costumes, comidas, vestimentas, ferramentas e utensílios. Parte desse legado está registrado e guardado no Memorial do Imigrante.

A maioria chegou ao País em busca de condições dignas de trabalho que permitisse refazer a vida. Fugindo da pobreza e cheias de esperança, milhares de famílias abandonaram suas casas e percorreram enormes distâncias em trens, carroças e a pé, até chegar aos portos de onde poderiam embarcar para o Brasil. Sem recursos para custear a passagem, receberam subsídio do governo do Estado de São Paulo para pagar a viagem.

Com poucas informações sobre o mundo novo, os imigrantes chegavam sem saber o que iriam encontrar. Depois de enfrentar até 60 dias nos porões de um navio a caminho de uma terra estranha, o alívio tomava conta dos passageiros ao desembarcar em Santos. Essa sensação ia desaparecendo quando avistavam uma imensa muralha verde que parecia intransponível. Mas a primeira vista da Serra do Mar não era o que mais causava estranheza no olhar estrangeiro.

Terra estrangeira

O que ficou marcado em suas memórias foi a viagem de subida rumo à Hospedaria de Imigrantes, na capital. Para a maioria, a viagem rumo a São Paulo começava assim que se colocava o pé em terra firme. Quando o trem iniciava a subida da serra, muitos tinham a impressão de estar em plena selva repleta de bichos. A então densa mata atlântica causava tal pavor que, não raro, os imigrantes se jogavam pela janela na tentativa de retornar a Santos. Não achavam possível haver cidade no meio daquele mato todo. Após vários incidentes, a São Paulo Railway passou a travar os vidros do comboio para evitar fugas.

Vencido o susto do primeiro contato, desembarcavam na estação da hospedaria. Exauridos, abriam as bagagens e as depositavam no corredor da estação para tomar sol e amenizar o mofo. O Memorial guarda imagens deles chegando, como é o caso dos japoneses que vieram em 1930.

Boa parte nem possuía malas. Seus poucos pertences eram transportados em sacos, mochilas, sacolas de estopa e caixas improvisadas. Só os mais afortunados possuíam baús e malas. Além de roupas, traziam louças, talheres, máquinas de costura, instrumentos musicais e de trabalho, objetos de toucador, fotografias, relíquias de família e peças que lembrassem a terra natal.

Hospedaria acolheu três milhões

Ao chegar à hospedaria, recebiam alimentação, vacina e medicamentos. Muitos regularizavam a documentação e faziam contatos de emprego com os fazendeiros. Ali permaneciam alojados por até oito dias.

Construída entre 1886 e 1888, a hospedaria tinha capacidade para receber três mil pessoas, mas chegou a acolher oito mil. Até 1978, quando foi desativada, haviam passado aproximadamente três milhões de pessoas em busca de trabalho, terras e melhores condições de vida. Desde 1998, parte do prédio abriga o Memorial.

Certidão de Desembarque

Aos interessados em conhecer melhor o processo de imigração, o Memorial tem o registro de todos os que passaram pela hospedaria. Reúne, preserva e exibe a memória dos que vieram ao Brasil em busca de esperança, aventura, fortuna ou fugindo de situação difícil nas suas pátrias de origem.

Há listas de bordo dos navios que atracaram em Santos, livro de registro dos alojados na hospedaria, documentos pessoais e cerca de cinco mil fotografias, livros e revistas. Parte desse material foi doada pelos próprios imigrantes e familiares. Aproximadamente 80% dos registros (de 1882 a 1907) estão informatizados.

“A hospedaria recebeu metade dos imigrantes que vieram para São Paulo entre 1882 e 1978. Para localizarmos essas pessoas, precisamos do maior número de dados possível. Por exemplo, o nome do chefe da família, a data de chegada, o nome do navio. A consulta pode ser feita pessoalmente, pelos computadores disponíveis ao público aqui no Memorial e pela Internet ”, explica a diretora do Memorial, Midory Kimura Figuti.

Em sua primeira visita ao Memorial, Lira Canhedo Cortez veio acompanhada do marido em busca de informações dos avós do casal, de origem espanhola e alemã. Disse que sempre teve curiosidade de saber a respeito de seus ancestrais. Depois da consulta, descobriu que o avô de seu marido, Frauz Frodl, aportou no Brasil em 1932 e imediatamente solicitou a Certidão de Desembarque.

Outra fonte de consulta é a biblioteca do Memorial que tem obras raras e alguns exemplares utilizados pelos imigrantes. Seu acervo compõe-se de livros, periódicos, folhetos e hemeroteca sobre emigração e imigração e também obras de assuntos correlatos como história e geografia. Conta ainda com coleção de audiovisuais de depoimentos de imigrantes, documentários e filmes.

Vinculado à Secretaria de Estado da Cultura, o Memorial do Imigrante é composto pelo Museu da Imigração (criado em 1993), Centro de Pesquisa e Documentação e núcleos dos Transportes e de Estudos e Tradições. O conjunto arquitetônico foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico (Condephaat), em 1982.

O Memorial oferece diversas exposições temporárias e permanentes aos 15 mil visitantes que recebe por mês. A maioria é composta de estudantes, grupos escolares, pesquisadores e descendentes de imigrantes. São mostras temporárias como a Nos Trilhos da Cantareira, que vai até o dia 28 de março, que irá recontar a história da Ferrovia Tramway-Cantareira, imortalizada na canção Trem das Onze, de Adoniran Barbosa.

A idéia é mostrar a contribuição desse mosaico de povos na transformação da provinciana São Paulo em maior cidade do País.

Viagem do Imigrante

A exposição Principal faz um apanhado geral do processo de imigração. A trajetória histórica da maioria dos imigrantes se dá pela apresentação de textos, fotos, maquetes, objetos pessoais e ornamentais, roupas, documentos e livros de registro de chegada.

Entre as curiosidades da sala, destacam-se a máquina pica-pau (fabricada no Brasil) de fazer comprimidos e um projetor de filmes. O primeiro servia para fazer medicamentos em quantidade suficiente aos hóspedes, já que a produção artesanal era insuficiente. O outro, reproduzia as imagens do cinema mudo de Charles Chaplin para ajudar a passar o tempo e aclimatar o pessoal. As sessões eram bem concorridas por não haver a barreira da língua e abordar temas universais.

Sala de Navegação

A Sala de Navegação reproduz o clima dos porões dos navios onde os imigrantes permaneciam a maior parte do tempo. Um imenso globo terrestre – que gira assim que o visitante entra no recinto – registra as principais rotas de viagem. A sensação de opressão e claustrofobia se deve à pouca iluminação e à simulação do barulho produzido pela sala de máquina.

Pelas fotos dos imigrantes chegando na hospedaria dá para perceber o impacto causado pela viagem. Em alguns rostos são visíveis o cansaço e o desgaste da longa travessia marítima. Suas roupas e bagagens informam sobre a sua origem social. No local estão expostos também exemplares originais de malas, baús, caixotes e sacolas de estopa que os imigrantes usaram para transportar seus pertences.

Com o Suor de Seu Rosto

A exposição Com o Suor de Seu Rosto mostra equipamentos, máquinas, ferramentas e matérias-primas utilizados pelos trabalhadores nas cidades e no campo. Destaca-se o conjunto de máquinas tipográficas pertencente ao Fanfulla, jornal italiano editado em São Paulo.

A sala ambienta o universo do trabalho masculino e abarca a maioria das profissões exercidas pelos imigrantes. Entre elas, as de alfaiate, sapateiro, pedreiro e vendedor. Foram eles que introduziram novas técnicas de produção, impulsionaram o desenvolvimento da indústria, comércio e serviços.

Nos Trilhos da Imigração

Ao longo de quase um século, a riqueza de São Paulo deslizou sobre trilhos. Mercadorias, pessoas, produtos agrícolas e industriais eram transportados nos carros e vagões das estradas de ferro. A importância do trinômio café–ferrovia–imigrante no desenvolvimento populacional e econômico está retratada na exposição Nos Trilhos da Imigração.

A exposição compõe-se da plataforma ambientada no estilo da original; da casa do engenheiro chefe da São Paulo Railway, construída em pinho-de-riga; de um bonde fabricado em 1912 que circula pela rua Visconde de Parnaíba e de duas locomotivas a vapor da década de 20 do século passado.

Ouro negro

A exposição Ouro negro – Café e Imigração em São Paulo permite ao visitante conhecer a história do café. Suas origens no Oriente Médio, a expansão pela Europa e a introdução no continente americano. Também estão expostos utensílios domésticos (como a xícara com aparador para bigode), ferramentas e maquinários.

Quem quiser ver de perto um pé de café, basta dirigir-se à lateral do prédio principal. Na Fazendinha de Café há um pequeno cafezal e objetos usados nas plantações. Ao lado, fica um casebre típico de trabalhador rural feito de pau-a-pique, com fogão a lenha, catre, panelas e cabaças.

De província a metrópole

No segundo andar do edifício – onde ficavam os enormes dormitórios coletivos – foi montada a exposição São Paulo Antiga reproduzindo a atmosfera da cidade provinciana do início do século 20. A São Paulo retratada – em fotos ampliadas e manequins – lembra muito pouco a metrópole atual.

Pelas Ruas Direita e XV de Novembro circulavam tílburis, carroças, bondes e pouquíssimos automóveis. Homens bem vestidos, usando chapéus e guarda-chuva, caminhavam pelas calçadas. Algumas mulheres conferiam a moda vinda de Paris. Gazeteiros, geralmente crianças, gritavam pelas ruas as últimas notícias para vender jornais. Fruteiros ofereciam seus produtos em carrinhos de mão.

É o registro da terra da garoa crescendo. Indústrias sendo instaladas; antigas chácaras formando novos bairros; o lampião a gás sendo substituído pela energia elétrica; e o ciao italiano, pelo tchau brasileiro. Diante do ritmo alucinado que põe abaixo o antigo para erguer o moderno, historiadores costumam dizer que a cada 40 anos São Paulo é uma nova cidade. Não à toa, o edifício do Memorial é uma raridade secular.

Mas pelo olhar do cidadão, a cidade ganha outra definição: “São Paulo, a terra do café, tem um Viaduto do Chá; a Rua Direita é torta; a Rua das Palmeiras, não tem palmeiras; e a Rua Formosa é feia.”

Já a mostra São Paulo de Toda Gente, da artista plástica Suzy Gheler, reúne amplo conjunto de bonecos para representar e homenagear os povos que chegaram ao Brasil no início do século 20. Os vários personagens em tamanho natural, feitos em tecido, usam vestimentas que representam mais de vinte países.

Além das exposições permanentes e temporárias, outra atração é o passeio nas locomotivas a vapor – a Pacific 353 e a No 5 – e no bonde, que faz o trajeto, ida e volta, do Memorial à Estação Bresser do Metrô.

SERVIÇO

O Memorial do Imigrante fica na Rua Visconde de Parnaíba, 1.316, na Mooca. Funciona de terça a domingo das 10 às 17 horas (inclusive feriados).

O ingresso custa R$ 4,00; estudantes dos ensinos fundamental, médio e superior pagam R$ 2,00. Entrada gratuita para menores de 7 anos e adultos com mais de 60.

Internet: www.memorialdoimigrante.sp.gov.br

Por Claudeci Martins, da Agência Imprensa Oficial