Especial do D.O.: Juquery muda para integrar o doente à sociedade

Programa de reabilitação prevê não apenas internar, mas também preparar o doente para viver em sociedade

ter, 03/12/2002 - 14h40 | Do Portal do Governo

O Hospital Juquery, de Franco da Rocha (SP), foi fundado há 104 anos e chegou a abrigar uma população de 15 mil internos. Referência nacional como o grande centro psiquiátrico do País, do seu histórico constam cenas em que os pacientes eram internados em condições subumanas, impregnados de remédios e punidos com reclusão em celas fortes, aplicação de eletrochoques, sem anestesia ou indicação terapêutica.

Desde 1995, porém, quando Maria Tereza Gianerini Freire assumiu a direção do hospital, a história está mudando. Hoje, a meta é não internar mais, e sim possibilitar que o paciente se recupere e se reintegre ao convívio social. Em função disso, a população do Juquery está diminuindo. Dos 2.200 internos em 1995, restam hoje 1.223, sendo 638 homens e 585 mulheres. A idade dos pacientes gira em torno de 55 anos com tempo médio de internação de 30 anos. Dos quase mil pacientes que saíram nesses 7 anos, muitos tiveram alta e voltaram para suas cidades de origem. Alguns estão internados em hospitais de sua região, outros foram levados pelas famílias. Assim, a população de internos continua decrescendo.

Residências terapêuticas

Pacientes com autonomia total estão sendo preparados para morar em residências terapêuticas, espécie de repúblicas, que eles próprios gerenciam. Os ‘internos moradores’, como são chamados, trabalham dentro do Juquery (oficinas abrigadas) ou em empresas das cidades vizinhas (oficinas psicossociais), dependendo do grau de autonomia alcançado por eles.

Arlinda de Castro Andrade chegou ao hospital com 23 anos. Hoje, aos 56, trabalha numa das oficinas abrigadas, cuidando dos jardins e mora numa residência terapêutica. ‘Estou muito feliz em poder trabalhar e morar com minhas amigas nesta casa’.

Os internos não têm vínculo empregatício. Os que trabalham para a administração ou nas oficinas internas, como uma montadora de instrumentos musicais, recebem gratificação. Aqueles que trabalham nas empresas (externas), recebem salário-mínimo.

A vida de Isac Ferreira dos Santos, de 44 anos, mudou muito desde que passou a trabalhar para a Fitafer, empresa de aço, que montou uma oficina de paletes dentro do hospital. A companhia mantém maquinaria e oferece treinamento. Isac foi internado em hospital psiquiátrico pela primeira vez aos 8 anos, por conta de uma convulsão. Passou por várias instituições até chegar ao Juquery, aos 20 anos. ‘Com meu trabalho, comprei os móveis de quarto, aparelho de som, televisão e roupas. Quando sinto vontade, tenho dinheiro para comprar uma coisa diferente para comer’.

Equipe multidisciplinar

Reflexões e práticas mostram que o hospital psiquiátrico centrado nos antigos padrões encontrava-se atrelado ao mito da periculosidade do louco, assim como o de sua incapacidade. ‘Não temos incidência de violência externa e nesses 7 anos que estamos aqui nunca recebemos queixas da comunidade em relação ao comportamento dos pacientes que vão e voltam da cidade’, diz Mariângela Florio de Souza, diretora de planejamento.

‘Conscientizamos nossos internos para lidar com o dinheiro, relação social, hora, dia e mês. Poucos se lembram como e quando chegaram aqui’. Uma equipe multidisciplinar, formada por psicólogo, terapeuta ocupacional, psiquiatra, fonoaudiólogo e fisioterapeuta, assistente social e enfermeiro, acompanha cada interno no diagnóstico, tratamento e adaptação nas oficinas.

Devolvendo a auto-estima

Os doentes crônicos requerem atenção especial. Alguns têm vaga lembrança do que são coisas práticas, como usar o banheiro e comer. Nem todos aprendem. O novo Juquery tenta devolver-lhes a auto-estima. ‘Para alguns, cuidar de suas necessidades básicas é uma lembrança perdida no tempo. Queremos preparar os que estão de alta para sair. É a inovação que implantamos aqui, não só internar e medicar’, explica Mariângela. Os pacientes participam de comissões de representantes dos internos e têm lugar na mesa do Conselho Estadual de Saúde. ‘Alguns não podem sair de um pavilhão grande que não é totalmente fechado. Esses são supervisionados de perto. Outros, circulam livremente pelo hospital.’

Faz parte do projeto revitalizar as grandes unidades (antigas enfermarias) a fim de deixá-las mais aconchegantes para os internos com condições de alta. Ainda há os que resistem em morar nas residências terapêuticas, administrando suas casas e trabalhando. A direção do Juquery pretende criar condições para que os pacientes tenham mais qualidade de vida e possam conviver em sociedade. ‘Numa instituição de confinamento como a nossa, por melhor que o paciente tenha chegado aqui, com a convivência com internos mais graves adquirem comportamento do coletivo. Os que têm autonomia tratam de suas questões físicas, vão à igreja, supermercado, padaria, banco e lojas. Têm crediário e pagam pontualmente os seus carnês.’

Habilitação psicossocial

O atendimento no Juquery é gratuito e objetiva substituir, dentro do possível, o tratamento exclusivamente medicamentoso do antigo sistema por outras práticas. A terapeuta ocupacional, Marcia Bevilácqua, diretora de reabilitação, implantou o Programa de Habilitação Psicossocial, que visa a incentivar o trabalho em indústrias do entorno. ‘Enquanto eles não tiverem condições de se auto-sustentar é necessário prepará-los para o convívio social. Os pacientes com autonomia total deveriam sair, mas a sociedade não os incorpora. Alguns saem, mas acabam voltando’.

Mais de 40 internos vão para a oficina no Museu de Arte Moderna (MAM), semanalmente. Outros ficam em oficinas das unidades. Para os que não podem sair, existe a arte-terapia, com reciclagem de papel, viveiro de plantas, horta e jardim.

Complexo hospitalar

O Hospital de Clínicas que existe hoje no Juquery tem várias especialidades médicas e atende à comunidade da região. A instituição ainda possui duas clínicas de psiquiatria para pacientes agudos com um pronto-socorro. Outra meta da atual direção é incorporar a psiquiatria como mais uma das especialidades médicas formando o Complexo Hospitalar do Juquery.

No novo programa, está sendo aplicado o conceito de integralidade do paciente. Os internos são tratados de suas doenças mentais e físicas, além de prevenção e cuidados odontológicos.

Antigamente, os deficientes físicos ficavam junto com os outros doentes, sem tratamento adequado ou eternamente acamados. Hoje, existe no Juquery o Centro de Reabilitação Física também aberto à comunidade, com unidades de reabilitação física, fisioterapia e fisiatria.

Grupos familiares

Neste ano (2002) foi criado o Grupo de Família com o objetivo de não apenas acompanhar o parente, mas também participar da vida do hospital e fortalecer a relação afetiva com o paciente, importante na recuperação.
São 130 familiares dos internos inseridos na instituição. Márcia Bevilácqua afirmou que é fundamental esta integração: ‘Mostramos o que é a doença mental. Iniciamos com 64 famílias. Hoje elas levam seus parentes internos para casa, de licença, e logo os levarão de alta. Mas essa não é a realidade de todos os pacientes. Geralmente os familiares não assumem o doente. Os parentes que têm uma boa relação com o interno fazem visitas periódicas, levam para passear e para as comemorações em casa, como Páscoa, Natal, Dia das Mães’.

Dependendo do caso, recebem licença para passar meses com a família. Outros familiares visitam seus doentes, esporadicamente, duas vezes por ano ou uma vez a cada dois anos. Há ainda os que não recebem visita nenhuma. Um grande número deles não tem família ou referência social. Para atender aos pacientes que não recebiam visita, o hospital conseguiu localizar 879 famílias. Hoje, elas estão participando do tratamento de seus doentes.

Márcia Bitencourt,
Da Agência Imprensa Oficial