Especial do D.O.: Centrinho de Bauru faz 35 anos ajudando pacientes sem recursos

Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais - o Centrinho - é ligado à Universidade de São Paulo

sex, 11/07/2003 - 11h19 | Do Portal do Governo

Da Agência Imprensa Oficial


Por Otávio Nunes

Em 1966, seis dentistas e um médico de Bauru reuniram-se para criar um serviço de atendimento a 20 crianças que haviam sido operadas em vários hospitais por causa de fissuras labiopalatais congênitas. Os lábios foram corrigidos, mas todas apresentavam seqüelas, como má-formação da arcada dentária, do palato (céu da boca) e da voz. Precisavam de tratamento complementar para corrigir seus problemas. Tempos depois, a unidade estava também fazendo correções da anomalia. Assim, nasceu o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, ligado à Universidade de São Paulo (USP), conhecido na cidade como Centrinho, que completou 35 anos no ano passado.

Hoje, o hospital é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como centro de referência em sua especialidade e mantém convênios com entidades internacionais. Evoluiu tanto que atende também deformidades cranianas e deficiências auditivas e visuais. Recebe pacientes de todo o Brasil e exterior. O atendimento, marcado com antecedência, é gratuito, pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Até o ano passado, os arquivos do Centrinho registravam 36,7 mil pacientes cadastrados com má-formação craniofacial (incluída a fissura de lábio), 18,5 mil com distúrbios auditivos e 1,3 mil com outras deficiências. Os números vêm desde a fundação, pois o tratamento de fissuras labiopalatais (conhecida popularmente como lábio leporino) e deficiência auditiva exigem longo acompanhamento. No primeiro caso, há pacientes que retornam ao hospital por até vinte anos.

No ano passado, foram registrados 3,1 mil novos casos (em todas as especialidades) e passaram pelo ambulatório 12,3 mil pessoas. Houve 4,7 mil internações e 7 mil cirurgias (plásticas, ortognáticas, enxertos ósseos, dentisteria, otorrinolaringologistas, implantes cocleares e osseintegrados e intraorais).

O hospital ocupa 19,7 mil metros quadrados de uma área total de 36 mil metros quadrados, onde também está a Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB/USP). Em 1967, quando foi criado como serviço, recebeu o nome de Centro de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Labiopalatais. Em 1973, passou a se chamar Centro Interdepartamental da FOB e três anos depois conquistou status de unidade autônoma como Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Labiopalatais. Já era centro de referência na especialidade, reconhecido pela OMS. O nome atual veio em 1988, mas na cidade de Bauru é conhecido como Centrinho.

Fissuras no lábio

Fissura labiopalatal pode ser causada por herança hereditária ou fatores ambientais (radioterapia ou medicamentos por que passa a mãe e também tentativas frustradas de aborto, com instrumentos perfurantes ou chás que afetam a placenta e acabam prejudicando o crescimento do feto). O superintendente, José Alberto de Souza Freitas, no cargo desde a fundação do Centrinho, informa que a fissura ocorre nos três primeiros meses de vida.

Ele revela estatísticas, mostrando que há no Brasil 260 mil pessoas com o problema, 66 mil no Estado de São Paulo e 26 milhões no mundo. “Muitos deles já em tratamento.” Desde que tratada cedo, a anomalia é corrigida e a criança, após tratamento pós-operatório que pode durar meses ou anos, terá vida normal.

Mas há também casos de pessoas adultas que procuram o hospital. Por falta de informação ou recursos não fizeram o tratamento antes. É o caso do eletricista Lotmark Bhor, descendente de alemães, de Blumenau (SC). Ele passou por diversas operações em sua cidade. A primeira, aos 27 anos. Hoje, aos 35, sua aparência nada indica que um dia teve fissura nos lábios. Porém, vem ao Centrinho fazer reabilitação em fonoaudiologia. Ganhou uma prótese este ano para corrigir a fala.

Projeto Flórida

Entre os convênios que o Centrinho mantém com instituições internacionais, um dos mais promissores é com a Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Desde 1994, o hospital de Bauru vem realizando pesquisas com pacientes operados de fissura do palato por meio de duas técnicas que recebem os nomes dos médicos que as criaram: a Von Langenbeck, a mais comum, e a de Furlow. “A Flórida cedeu-nos esse trabalho por ser o Centrinho o hospital com maior número de pacientes atendidos com esta anomalia em todo o mundo”, garante a fonoaudióloga Maria Inês Pegoraro Krook.

O objetivo é saber qual técnica propicia melhores resultados na fala e qual idade é a mais indicada para a cirurgia. No Centrinho, informa Maria Inês, metade das crianças entre 9 e 12 meses é operada pelo método de Von Langenbeck e a outra pelo de Furlow. O mesmo procedimento é feito com pacientes entre 13 e 18 meses. “A escolha de qual técnica utilizar é aleatória, por computador.”

Após a cirurgia, a criança retorna a Bauru de seis em seis meses para os médicos acompanharem a evolução do tratamento, até que se completem cinco anos da operação. Passa por testes de fonoaudiologia, psicologia e otorrinolaringologia. O resultado da pesquisa, denominada Projeto Flórida, poderá estar concluído em dois anos. “Até o momento, 550 pacientes participam do estudo”, revela a fonoaudióloga.

Olhos e ouvidos

O Centro de Atendimento aos Distúrbios da Audição e Visão (Cedalvi) funciona fora das instalações do Centrinho e também recebe pessoas de todo o País. As especialidades são otorrinolaringologia, neurologia, clínica médica, oftalmologia, fonoaudiologia, assistência social, nutrição, psicologia, pedagogia e genética.

Na primeira consulta, o deficiente auditivo é atendido pelo otorrino e pelo fonoaudiólogo para detectar o nível da perda de audição. Depois, experimenta vários tipos de aparelhos. O paciente pode passear pelas dependências do Cedalvi e pelas ruas próximas para analisar como se sente nessas condições e escolher o que melhor se adapta ao seu ouvido. A unidade trabalha com aproximadamente sete fabricantes de aparelhos, todos importados, e dezenas de modelos.

O deficiente deve esperar para ter seu aparelho, que será comprado de importadores pelo próprio Centrinho. O valor do produto oscila entre R$ 1 mil e R$ 3 mil e o pagamento é feito pelo SUS.

A fonoaudióloga Adriana Sampaio de Almeida Meyer informa que o deficiente deve voltar ao Cedalvi após um mês de uso do aparelho. “Para pacientes que moram longe, não há condições de fazer acompanhamento fonoaudiológico mais intenso. A reabilitação terá de vir pelo contato familiar, escolar ou por alguma terapia na cidade onde mora.”

Para residentes em Bauru e proximidades existe o Centro Educacional para Deficiente Auditivo (Cedau), localizado em outro prédio, próximo ao Centrinho, onde crianças fazem testes regulares de fonoaudiologia. Contam também com variado programa de entretenimento, como coral, esportes e teatro. O Cedau oferece ainda curso de Libras (linguagem de sinais), a melhor maneira de os deficientes com maiores perdas de audição se comunicarem.

O Centro de Pesquisa Audiológica (CPA), outra unidade vinculada ao Cedalvi, realiza implante coclear (onde um dispositivo é introduzido na cóclea, o “caracol” do ouvido). “A técnica é indicada para deficientes com perda profunda de audição, casos em que o aparelho na orelha não irá resolver”, explica Adriana.

O Centrinho, em 1990, foi o primeiro hospital brasileiro a realizar implante coclear multicanal. Até agora, mais de 300 cirurgias do tipo, 47 delas no ano passado. “O implante requer muita terapia e paciência para a pessoa ouvir normalmente. Pode levar meses ou anos”, justifica a fonoaudióloga. O melhor período para esse tipo de cirurgia é quando a criança tiver por volta de 20 meses de idade.

O Cedalvi atende a deficientes visuais até 9 anos. Realiza também cirurgias nos olhos, por causa de anoftalmia (a pessoa nasce sem um ou os dois olhos). As operações são enucleação (retirada total do globo ocular) e evisceração (retirada apenas do núcleo dos olhos). Nestes casos, o paciente ganha um olho artificial. “Obviamente, ele nunca enxergará com este artifício. Mas terá aparência normal, o que é muito bom para aumentar a auto-estima da pessoa”, observa Suzana Rabello, pedagoga especialista em deficiência visual.

As aventuras do Tio Gastão

A vida profissional do cirurgião-dentista José Alberto de Souza Freitas confunde-se com a história do Centrinho. Um dos fundadores, ele ocupa desde o início a direção do hospital. Atualmente, seu cargo é de superintendente. Conhecido como Doutor Gastão ou Tio Gastão (pelas crianças), é capaz de fazer peripécias para conseguir verbas ou construção de novas unidades no Centrinho. “É a minha vida”, confidencia o adepto fiel de São Francisco de Assis, cujas imagens e estátuas enfeitam sua sala.

Quando garoto, era reconhecido pelos amigos como sortudo. Daí o apelido de Gastão, personagem de Walt Disney famoso pela sorte que tem. E o destino provou que o doutor faz jus à fama. Ele conta que já interpelou diversas autoridades em corredores, salas, eventos, encontros. Tudo para reivindicar verbas para o hospital que ajudou a criar e sempre dirigiu.

Em agosto de 1976, o então presidente Ernesto Geisel visitava Bauru e Tio Gastão tratou de chegar até ele. Usando o caminho da cozinha, ganhou acesso ao local onde, naquele momento, o presidente estava recebendo de presente a camisa vermelha e branca do Noroeste, o time mais famoso da cidade. Apesar dos seguranças, conseguiu falar com Geisel. Resultado: ganhou a construção de mais uma unidade de tratamento no Centrinho.

Ainda na década de 70, em reunião com o poderoso ministro da Fazenda Delfim Neto, fez seu pedido. Ex-professor da USP, Delfim lhe disse: “Doutor, o senhor sabe que o orçamento da universidade é maior do que o de pelo menos oito Estados do Norte e Nordeste do Brasil?”. Gastão não se intimidou. Mostrou ao ministro as fotos de crianças com fissuras labiopalatais. Delfim viu as fotos e perguntou: “De quanto o senhor precisa?”. Com a verba, foi erguido o prédio de Ensino e Pesquisa e o do Centro Odontológico.

Quando o presidente José Sarney visitou Lençóis Paulista, cidade vizinha a Bauru, lá estava o Doutor Gastão. Ele levou um grupo de pacientes do Centrinho para reforçar seu pedido de verbas. Uma das pessoas do grupo foi reconhecida pela primeira-dama, como empregado da família Sarney em São Luís (MA). Assim, foi construído o novo prédio para o Centrinho, dentro do câmpus da FOB.

O edifício ainda está em fase de construção. “Quem vê por fora não imagina que falta o acabamento interno”, lamenta Gastão. Atualmente, sua missão é conseguir R$ 15 milhões para ter o prédio em condições de uso. Com a sorte e perseverança que São Francisco de Assis lhe deu, Doutor Gastão acredita que logo conseguirá seu intento.

Tudo pelo social

A assistente social Maria Inês Gandra Graciano começou a trabalhar no Centrinho há 30 anos, como estagiária. Algum tempo depois, criou o departamento no hospital e hoje lidera equipe de 25 profissionais que recebe pacientes do Brasil e do exterior, ouve seus problemas e tenta encontrar soluções. Uma das obras que ajudou a tornar realidade foi a Sociedade de Promoção Social do Fissurado Labiopalatal (Profis), fundada em 1975, atualmente instalada em frente ao Centrinho. A entidade é mantida por sócios. A maioria, pais de pacientes.

Na Profis, paciente pobre que vem de longe encontra estadia, alimentação e integração com a comunidade hospitalar. São 62 leitos para pais, demais acompanhantes e até motoristas de veículos (ambulâncias, furgões e ônibus) que trazem pessoas ou grupos de pessoas para tratamento no Centrinho. “É a melhor forma de ajudar quem não tem dinheiro para pagar estadia e comida em hotéis ou pousadas, pois há tratamentos que exigem que o paciente fique vários dias em Bauru”, explica Maria Inês.

O paranaense Élio Martins, pedreiro em Maringá, operou o palato no Centrinho pela primeira vez aos 39 anos. Hoje, tem 50 e esqueceu-se de quantas vezes voltou para fazer terapia. “Sempre que venho aqui, fico hospedado na Profis.” A passagem de ônibus é paga pela prefeitura de Maringá.

A costureira carioca Anazélia Ferreira de Lima trouxe seu filho João Paulo pela terceira vez ao hospital. Foi operado duas vezes de fissura labiopalatal. “É muito bom ficar aqui na Profis.” A passagem do Rio a Bauru é paga pelo SUS.

Maria Inês diz que uma das maiores dificuldades da assistência social do Centrinho é oferecer condições para que famílias carentes possam dar continuidade ao tratamento do paciente. “Essas pessoas têm de voltar diversas vezes, pois a terapia é longa e complexa.” Outro trabalho árduo é fazer com que a TFD – Transferência Fora de Domicílio (portaria que obriga as prefeituras a fornecerem transporte para pacientes) seja cumprida. “Orientamos os pais a acionar o Ministério Público, se for preciso.”

Serviço

Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC/USP)
Rua Sílvio Marchione, 3-20 – CEP: 17043-900 – Bauru – SP
Telefone: (14) 235-8000 – Fax: (14) 234-7818
Internet: www.centrinho.usp.br
Ouvidoria: 0800-101988 (ouvidoria@centrinho.usp.br)