Especial do D.O.: Casas da Solidariedade acolhem 516 crianças em situação de risco

Casas são mantidas pelo Fussesp, em parceria com as Secretarias da Cultura e Juventude, Esporte e Lazer e com o apoio da iniciativa privada

sex, 29/10/2004 - 14h38 | Do Portal do Governo

“Era triste, parada e tinha dor de cabeça. Quase não saía de casa. Ficava o dia inteirinho assistindo tevê com meus três irmãos porque meu pai e minha mãe trabalham fora. Não era nada legal. Agora estou adorando aqui porque é alegre (abre um sorriso largo) e posso fazer um montão de coisa: dançar, desenhar, pular na rede do circo, cantar no coral, fazer tapete e … brincar,” conta Sarita Cruz Alba, 8 anos.

Como Sarita, Luana Gomes da Silva, 7 anos, passava o dia assistindo televisão com suas duas irmãs e um irmão enquanto seus pais saiam de manhã para trabalhar na barraca de salgadinhos e cachorro-quente. Além de não ter brinquedos, o que menos gostava era de ajudar a arrumar a casa. “Não agüentava mais! Gosto de vir para cá com minha irmã pra gente brincar e se divertir. Aprendi a fazer desenho e gosto do lanche e do almoço daqui. É muito gostoso.”

Os relatos do cotidiano de Sarita e de Luana se assemelham aos de seus 274 colegas acolhidos pela Casa da Solidariedade II – Parque D. Pedro II e pouco difere da situação das 242 crianças e adolescentes que freqüentam a Casa da Solidariedade I – Campos Elísios. São filhos de famílias pobres, numerosas e desagregadas, moradores de pensão, cortiço ou favela, que vivem em ambientes onde predominam a violência, o abandono e a violação dos seus direitos básicos e estão propensos à marginalização. A maioria só mora com a mãe e boa parte tem o pai ou a mãe sem emprego.

Lista de espera – Mantidas pelo Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo (Fussesp), em parceria com as Secretarias da Cultura e Juventude, Esporte e Lazer e com o apoio da iniciativa privada, as Casas da Solidariedade oferecem oficinas culturais, atividades esportivas e cuidados com a saúde e a higiene pessoal.

“Não fazemos assistencialismo. Aqui é um espaço de construção de um cidadão digno e consciente de seu valor e importância social. Oferecemos a oportunidade de a criança descobrir e desenvolver seu potencial para a vida. Ela chega muito agressiva e carente de atenção, carinho e cuidados, e aqui encontra um ambiente de paz, uma espécie de oásis, onde aprende a cordialidade e o respeito a si mesma e ao outro” , define a diretora da Casa D. Pedro II, Maria Helena Brochini Galvani.

Para participar das atividades das Casas da Solidariedade, as crianças e adolescentes devem estar em situação de risco e propensos à marginalização, freqüentar a rede pública de ensino, ter renda familiar de até três salários mínimos e morar ou estudar próximo das Casas. Terão prioridade aqueles cujos pais trabalham fora e não têm com quem deixar os filhos que, abandonados, podem ir para nas ruas.

Nas duas casas há uma assistente social que averigua a situação de cada aluno antes de admiti-lo. Na lista de espera da Casa do Parque D. Pedro II estão 156 crianças; na Casa de Campos Elísios, 170. As 326 serão chamadas, quando houver desistência, por ordem cronológica, mas priorizando os casos mais necessitados ou emergenciais. Ambas as diretoras afirmaram que nas atuais condições, mantendo o mesmo padrão de atendimento, não há como acolher maior número de alunos.

Situação limite – As semelhanças entre essas crianças vão além da sua condição sócioeconômica e cultural, do uso do uniforme doado pelo Fussesp, da vontade de brincar e do que fazem com o tempo disponível. Elas têm noção das dificuldades financeiras e da violência que as cerca ou da qual são vítimas, de fato, ou em potencial.

Sarita deixa transparecer que sabe das dificuldades financeiras da família. Na oficina de desenho, escolhe a frase “Uma montanha de diversões pela metade do preço” recortada do material trazido pelo professor de artes plásticas para compor seu desenho. Questionada a respeito, diz que sua mãe faz bijuterias, ganha pouco e mal dá para comprar comida. “Não sobra nada para diversão e brinquedo.”

Como suas colegas Sarita e Luana, Murilo Gomes de Araújo, 10 anos, mora na Baixada do Glicério e estuda em escola pública, à tarde, exigências para poder freqüentar a espaçosa e acolhedora Casa Parque D. Pedro II, construída para abrigar o Colégio São Paulo. Habituados a dividir o exíguo espaço do lar com suas famílias numerosas, ficam meio confusos nas trocas de salas onde são realizadas, há quatro anos, as 12 oficinas culturais.

Os corredores amplos e limpos, o chão de madeira encerado, as paredes decoradas com desenhos alegres e coloridos (resultado do aprendizado em aula) também causam estranheza a quem vive em ambiente de pensão, apartamento alugado ou ocupado (cortiços verticais).

Murilo habitou-se tanto ao local e com as atividades das oficinas que nem sente falta de disputar a televisão com suas duas irmãs e nem de ficar insistindo para sua mãe deixá-lo ir jogar futebol no pátio da igreja. “Ela falava que era perigoso e não me deixava ir brincar. Agora nem peço mais! Aprendi a ver menos tevê e a gostar mais de ler. Até minha letra melhorou. Foi a professora que falou.”

Lanche e almoço – Patrícia Bezerra Santos, 8 anos, também se diz feliz com a mudança de rotina. Não precisa mais ir com a mãe fazer faxina. “Na casa dos outros não podia nem me mexer que levava bronca. Aqui posso brincar, dançar e fazer desenhos e amizades. É muito legal!” exclama movimentando o corpo e as mãos que seguram um fantoche feito com material de baixo custo e reciclado, como a maioria usada nas oficinas.

A também filha de faxineira, Larissa de Oliveira Barbosa, 7 anos, está contente por não precisar ficar com os quatro irmãos sob os cuidados da vizinha. Acorda cedo para chegar em tempo para o café da manhã (suco ou café-com-leite ou chá e pão com manteiga ou queijo ou presunto), servido às 8 horas. Como a maioria, aguarda com ansiedade (principalmente na segunda-feira) o horário das refeições.

Para Ingrid Tainá de Oliveira Barbosa, 8 anos, o almoço servido após o término das oficinas, às 11h20, é a única refeição do dia. No jantar, ela e os quatro irmãos tomam café-com-leite ou suco e pão-com-manteiga. Sua mãe é dona-de-casa e apenas o seu pai recebe salário na família. Após lavar as mãos, pega seu prato e não recusa nada do que lhe é oferecido. Prato limpo, serve-se de suco e de um pedaço de abacaxi. “Está muito gostoso”, fala ao saborear os alimentos.

Salsicha em árvore – Montado por nutricionista, o cardápio balanceado – inclui cinco variedades de alimentos – é elaborado com carnes, amidos, legumes e verduras. As crianças recebem a determinação de comer pelo menos três tipos de alimentos. O suco e a sobremesa (que pode ser fruta ou pudim ou gelatina) são servidos somente depois da refeição.

“Além de darmos a alimentação, ensinamos educação alimentar e montamos uma horta com a ajuda deles. Alguns achavam que salsicha dava em árvore. Com o plantio e as sementes, eles aprenderam a conhecer vários legumes e verduras”, explica Maria Helena.
Sentado em uma mesa próxima à Ingrid, Guilherme Souza Araújo, 7 anos, também saboreia seu almoço com o mesmo apetite.

Diferentemente da maioria, diz não ter irmãos. “Tinha uma irmã que morreu quando era pequena. Agora só tem eu e uma menina que uma mulher deixou lá em casa o ano passado. Minha mãe parou de ajudar meu pai no serviço de camelô para cuidar dela.”

Escova e fio dental – Como todos, ao final da refeição ele faz a higiene bucal sob a supervisão do dentista Pedro Cheque Bernardo, responsável por ensinar as crianças a cuidar dos dentes e a adquirir hábitos saudáveis. Guilherme diz que escovava os dentes, mas não “do jeito que o tio Pedro ensinou”, e confessa que nunca tinha usado fio dental.

Bernardo montou todo o projeto odontológico das duas Casas da Solidariedade e adotou a sistemática de acompanhar a escovação, fazer atendimento preventivo, tratamento curativo e emergencial. Foi dele a idéia de manter as escovas – identificadas pelo nome – guardadas em armário próximo às pias, para assegurar que a escovação seja feita e a escova não se perdesse.

“Faço dois exames clínicos e duas limpezas anuais em cada criança. Quatro vezes por ano reúno todos e explico os hábitos saudáveis para evitar a cárie. Para incentivar, dou medalhas de ouro, prata e bronze, de acordo com a melhora dos cuidados adquiridos. Tenho ficha deles onde anoto o estado da dentição e como está o progresso da condição bucal. Antes tinha muito tratamento curativo por falta de cuidado. Com quatro anos de projeto, a prevenção superou o tratamento curativo.”

Pancadas, piolhos e frieiras – Após a escovação, Guilherme, como todas as crianças, dirige-se à sala de armários, pega sua mochila para assistir aula numa escola próxima à região. Assim termina o primeiro turno da Casa da Solidariedade. O segundo, começa às 13 horas com o almoço aos que chegam da escola; segue com as atividades físicas e culturais, faz uma pausa para o lanche da tarde, às 16h20, e às 17 horas encerra o dia.

Além do atendimento odontológico, a Casa oferece tratamento fonoaudiológico e mantém uma auxiliar de enfermagem para cuidar de queixas como dores de cabeça, de estômago e fazer curativos. “O que mais tem são casos de pancadas, contusões, machucados pequenos, dores de cabeça e febre. Uma vez por semana examino os cabelos e unhas para verificar se há piolhos, lêndeas ou micoses. Quando encontro qualquer problema, notifico os pais. Oriento cuidados básicos como enxugar bem o pé para evitar chulé e frieiras, muito comuns”, afirma Marilena da Lavra.

Crianças trocam TV pelas oficinas da Casa da Solidariedade

A rotina e os horários de funcionamento da Casa da Solidariedade de Campos Elísios são idênticos. Apenas os espaços das salas, onde são oferecidas dez oficinas, são menores porque foram adaptados para receber as crianças. Antes era um casarão que já foi habitado pela família do Barão do Café, Bento de Almeida Prado, e há 20 anos é ocupada por órgão público, oito deles pela Casa.

A diretora Silmara Sueli de Jesus explica que o perfil das crianças é um pouco diferente. “Apesar de pertencer a famílias numerosas, de renda baixa, com a maioria vivendo com a mãe, normalmente solteira, morar em cortiço, pensão ou favela, há uma preocupação maior com os filhos e com a educação deles. Não chegam tão agressivos quanto o pessoal da outra Casa e o comportamento e as atitudes são mais amistosos.”

Outro diferencial é o atendimento médico aos familiares. Antes da admissão na Casa, os pais passam por exame com clínico geral e há um pediatra e um ginecologista. As consultas e tratamentos são feitos por meio de um convênio assinado com a Interclínicas, que fornece os profissionais e os medicamentos. O tratamento odontológico é feito pelo mesmo dentista da outra Casa, que é mantido pela Porto Seguro e a fonoaudióloga, pelo Instituto de Solidariedade (ISO).

Café, pão e leite – Em seu primeiro dia no local, Hilton Vieira Leite, 13 anos, desenhava calmamente um prédio e disse que queria aprender computação e capoeira. Filho de dona-de-casa e cozinheiro, ele tem dois irmãos e vem com o primo para as oficinas. Acrescentou que tinha visitado a biblioteca – com acervo de dez mil exemplares distribuídos em temas diversos como literatura infanto-juvenil brasileira e estrangeira, dicionários e livros didáticos – e quando precisasse fazer trabalho escolar, já sabia onde pesquisar.

Antes de começar a fazer capoeira, tapeçaria, educação artística e computação na Casa, em 2003, Jader René Rodrigues, 10 anos, ficava assistindo televisão e jogando bola na rua. Disse que não gostava muito porque tinha pouco espaço e sempre quis jogar capoeira e não dava. Em sua casa moram os quatro irmãos, mãe, avó e três tios. Nos finais de semana, vai para outra escola fazer as refeições e participar de atividades esportivas. “Em casa só tem café com leite e pão, à noite.”

Os irmãos Jonatan e Paulo Oliveira da Silva, 7 e 9 anos respectivamente, vêm juntos para as oficinas. Antes, ficavam com dois irmãos menores assistindo televisão e brincando na calçada. Filho de cozinheiro, Paulo elogia o almoço e diz que quem faz a refeição em sua casa é a mãe e que nem sempre é gostosa. Participam de peças de teatro, tapeçaria com botão e fazem desenho. “Fizemos um prédio com tubos vazios de pasta de dente”, lembra Jonatan.

Oficina substitui TV – Filha única, Claudia Maiara Figueira Silva, 9 anos, ficava sozinha em casa assistindo televisão. “Minha mãe trabalha de empregada doméstica o dia inteiro. Acho que meu pai está morando com um tio. Faz tempo que não o vejo.” Ela diz que está “adorando” participar da capoeira, dança, brincadeiras e fazer amizades.

Kleverson Lucas Rafael, 7 anos, diz que gosta de brincar com carrinhos e com os dois irmãos, um deles, inclusive, já participou das oficinas da Casa. Ele estuda no Liceu Coração de Jesus porque a mãe é cozinheira da creche do colégio. “Minha mãe não queria que a gente ficasse em casa assistindo tevê e viemos pra cá.”

SERVIÇO
Casa da Solidariedade I – Campos Elíseos: Rua Guaianases, 1.112. Tel. (11) 3331-3124 / 3331-3282
Casa da Solidariedade II – Parque D. Pedro II: Rua Frederico Alvarenga, 125. Tel. (11) 3106-9063 / 3106-9097
Horário de funcionamento das duas casas: das 8 às 12 horas para crianças que freqüentam a escola pública à tarde; das 13 às 17 horas para crianças que freqüentam a escola pública pela manhã.
Oficinas oferecidas: tapeçaria, artes plásticas, capoeira, literatura, teatro, dança, paisagismo, horta, história em quadrinhos, informática, cinema e circo.

Claudeci Martins
Da Agência Imprensa Oficial