Especial D.O.: Estudantes índios preferem escolas instaladas nas próprias aldeias

Participaram do curso de Magistério Indígena, organizado pela Secretaria da Educação, 24 comunidades indígenas, situadas em 14 municípios

qua, 11/08/2004 - 10h43 | Do Portal do Governo

Imagine uma criança indígena estudando em escola estadual de um bairro qualquer de São Paulo. Será que ela consegue se adaptar ao dia-a-dia da cidade? Por outro lado, será que os demais alunos aceitam os costumes do índio? Experiências reais indicavam problemas nessa relação. Como resultado, muitos indígenas deixavam o estudo de lado.

Em 1997, a Secretaria da Educação recebeu de lideranças indígenas um pedido para o funcionamento de escolas nas aldeias. Foram realizados estudos entre as Diretorias de Ensino e constatou-se que 98% das crianças e jovens indígenas, de 7 a 14 anos, não iam além da 3a série do ensino fundamental na escola tradicional. Poty Poran Turiba Carlos, da Aldeia Guarani Jaraguá, na Estrada Turística do Jaraguá, participava desde 1997 de reuniões na Secretaria da Educação e se tornou membro do Núcleo de Educação Indígena (NEI). Em 2001, começou a dar aulas para as crianças da sua comunidade, mas não tinha curso de especialização, apenas o ensino médio.

Na aldeia havia uma professora não-indígena que ensinava as matérias do currículo regular e Poty, aulas de língua e cultura guarani. Foi aí que o núcleo reivindicou o curso de formação de professores indígenas, no que foi atendido pela secretaria. Em julho de 2002, começou o curso especial de formação de professores indígenas para a Educação Infantil e as primeiras séries (1ª a 4ª).

O treinamento durou seis meses para quem já tinha o ensino médio, e 18 para os que precisaram fazer supletivo para completá-lo. Foi ministrado por professores contratados pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) nos Pólos dos Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (Cefam).

Ao fim do processo, foram graduados 61 docentes indígenas, em magistério nível médio. Anteriormente, a maioria tinha apenas até a 5ª série. “Nós ficávamos duas semanas no Cefam, estudando oito horas por dia, inclusive sábados e domingos, e descansávamos a terceira semana na aldeia”, lembra Poty, uma das formandas. O curso de Magistério Indígena aos alunos foi gratuito, mas a Secretaria da Educação investiu R$ 2,6 milhões. Os participantes do treinamento vieram de 24 comunidades indígenas, situadas em 14 municípios.

Simultaneamente a essa formação, foram construídas as escolas nas próprias aldeias. O valor gasto em cada uma das 24 unidades foi de aproximadamente R$ 100 mil. As instituições de ensino atendem hoje a cerca de 700 alunos, de 7 a 14 anos de idade. Os salários dos educadores indígenas correspondem aos dos professores do ciclo I do ensino fundamental.

Professora-merendeira

Em 2003, quando acabou o curso, a comunidade da aldeia do Jaraguá se reuniu para escolher quem seria a professora. A partir daí, Poty assumiu a escola sozinha. No começo, fazia de tudo. “Eu saía da sala de aula para preparar a merenda. Depois que os alunos comiam, eu lavava a louça e voltava a dar aula”, diz.

Mas tudo começou a mudar. Antes, era vinculada à Escola Estadual Agenor Couto Magalhães, da Vila Clarice, a três quilômetros do povoamento. Neste ano, foi desvinculada e agora tem um vice-diretor e mais dois professores, além de Poty.

Chegaram, também, duas merendeiras e uma auxiliar administrativa. Todos os funcionários são obrigatoriamente da aldeia. O vice-diretor, Moacir Augusto Martin, outro participante do curso de formação, afirma que a importância da escola é grande: “É como um reconhecimento à existência da nossa aldeia. Ainda mais agora que está desvinculada, tenho orgulho de falar o nome da nossa Escola Estadual Jetupe Amba Arandu”.

Essas instituições de ensino nativas não têm acompanhamento pedagógico permanente das Diretorias de Ensino, pois ainda não há assistentes técnicas em educação indígena formadas para isso. “Dou aula em português e em guarani, pois algumas crianças falam mais uma língua do que a outra”, explica a professora Poty. O período de aulas é de quatro horas diárias. O material didático foi preparado especialmente para o ensino do índio. “Durante o curso de formação, elaboramos as cartilhas com a ajuda do pessoal da USP”, diz Martin.

O poeta

As crianças da aldeia têm aulas de português, matemática e história. “Às vezes, a gente sai da sala de aula, anda pela aldeia ou vai até o parque. De vez em quando dou aula das 8 às 11 horas, e das 11 horas ao meio-dia vamos para a Casa de Rezas, que é o lugar mais tradicional da aldeia. Lá a gente canta, conta histórias, brinca, toca música e reza. Tomei essa decisão porque achei que eu tinha me perdido um pouco e deixado de lado a nossa cultura”, relata Poty

Geralmente, os alunos entram na escola aos 7 anos. Se terminam a 4ª série antes dos 14, podem continuar os estudos na escola da Vila Clarice. Quando têm mais que isso, estudam na aldeia, no período noturno, na Escola de Jovens e Adultos (EJA). “Muitos preferem esperar os 14 anos para estudar aqui mesmo, pois não se adaptam às escolas de fora”, relata o vice-diretor.

Prova disso é o garoto Tiago Henrique Vilar, de 10 anos, que está na 3ª série na escola da comunidade: “No ano que vem eu termino a 4ª série, mas vou esperar fazer 14 para continuar aqui na EJA. Os meus amigos que foram aprender fora não gostaram muito. Tinha menino que ria deles”. Tiago pretende ser artista: “Quero trabalhar na televisão”. Escreve poesias e no ano passado publicou uma delas no livro de comemoração dos 450 anos de São Paulo.

Guaranis: preocupação para não saturar a natureza

A aldeia Jaraguá é cortada por uma rodovia, que divide a comunidade. “Na parte de cima, as pessoas são mais tradicionais, de aldeias mais afastadas. O pessoal de baixo é menos conservador e mais urbano”, avalia a professora Poty. Isso acontece, segundo ela, porque a aldeia de baixo está no local há 40 anos e a parte de cima começou a crescer há apenas seis, com indígenas vindos de vários povoados.

O deslocamento faz parte da cultura guarani. Todo indígena desse grupo é um pouco nômade. Antes da colonização a aldeia inteira se deslocava de um local para o outro, e hoje são as famílias. Os guaranis moravam por cerca de cinco anos num determinado local e depois mudavam. “Isso porque durante esse tempo, nós caçávamos e plantávamos. A mudança era para não saturar a natureza e deixá-la se reequilibrar”, esclarece Poty.

“Antes da colonização, o índio tinha todo o território para se deslocar. Agora, tem de ir de reserva para reserva, nas áreas demarcadas”. Por isso, não é o grupo inteiro que se muda. Há sempre uma família fixa na reserva, porque, se saírem todos, a terra pode ser invadida. “A minha família é fixa na nossa aldeia. Foi o meu avô quem veio para cá primeiro, com a minha avó e 13 filhos. Eles foram crescendo e formaram a comunidade. Quero mudar, mas as circunstâncias me deixam presa aqui. Além da escola, estou na faculdade de pedagogia”, diz a professora.

Sobrevivendo na cidade

Só em São Paulo existem 15 povoações guaranis. Na aldeia Jaraguá são 200 pessoas, e quase metade é formada pelas crianças que estudam na escola dos índios. A comunidade sobrevive principalmente da venda de artesanato. Poucos trabalham fora. Segundo Poty, a aldeia está bem, comparada a outras, apesar de a maioria viver na pobreza. As casas são feitas com sucata encontrada na rua.

“Não temos condições de comprar material para construí-las, mas a CDHU tem projeto para casas indígenas. Na parte de baixo, cinco casas foram edificadas pelo programa.” A religião ainda é uma das coisas mais fortes da cultura guarani, e muito da alimentação tradicional é mantida. “Não caçamos mais, então fazemos uma adaptação: em vez de comermos carne de caça, substituímos pela de boi.”

Onde há professores indígenas

Município Comunidade

  • Arco-Íris Vanuire
  • Avaí Kopenotí, Ninuendaju, Ekeruá e Peruguá
  • Bertioga Rio Silveira
  • Braúna Icatu
  • Cananéia Rio Branco II e Santa Cruz
  • Iguape Paraíso
  • Itanhaém Rio Branco
  • Itariri Rio do Azeite e Capoeirão
  • Mongaguá Aguapeu e Itaoca
  • Pariquera-Açu Pindoty
  • Peruíbe Bananal e Piaçaguera
  • São Paulo Jaraguá, Morro da Saudade e Krukutu
  • Sete Barras Peguao-Ty
  • Ubatuba Boa Vista e Renascer

    Andréa Barros
    Da Agência Imprensa Oficial

    (AM)