Como nascem os empreendedores

Programa de Auto-Emprego estimula criação de micro e pequenos empreendimentos, cooperativas e empresas de produção e serviços

qua, 22/08/2001 - 13h28 | Do Portal do Governo


Programa de Auto-Emprego estimula criação de micro e pequenos empreendimentos, cooperativas e empresas de produção e serviços

São 30 as embalagens plásticas que acabam de ser trazidas ao barracão cravado em um dos pontos pobres do Jardim dos Reis, periferia da Zona Sul de São Paulo. A carga trivial, destinada a acondicionar detergente, é recebida com certa solenidade pelos 10 alunos presentes a mais um dia de aula do Programa de Auto-Emprego (PAE). Todos sabem que essa será a última remessa que chegará gratuitamente. A próxima vai ter de ser comprada e, para isso, os alunos vão ter de conseguir vender os produtos que ainda estão aprendendo a fazer durante as aulas. Naquela tarde, os alunos – uma turma heterogênea, com gente dos 16 aos 46 anos – mal completavam duas semanas de convivência e aprendizado e já estavam às voltas com o desafio de se auto-sustentar, como uma empresa de verdade.

Apesar do pouco tempo, da baixa escolaridade e do fato de nunca terem vivido antes experiência semelhante, em que decisões e responsabilidades têm de ser compartilhadas, todos já assimilaram o conceito da organização em grupo. Isso eqüivale a compreender o espírito que norteia o PAE, cujos cursos duram 60 dias.

Com o objetivo final de formar empreendedores, pessoas capazes de mudar seu padrão de vida independentemente de possuir ou não emprego formal, o PAE optou por um modelo pedagógico que subordina a teoria à prática. Algo como fazer as pessoas sentirem de que forma uma empresa é gerida, antes de simplesmente ouvir como isso é feito. Mesmo porque os princípios básicos (não gastar mais do que ganha, por exemplo), quando ditos, parecem óbvios demais. Aplicados, no entanto, passam a fazer parte da consciência.

Limpeza

Esses 10 alunos do Jardim dos Reis escolheram um curso que ensina a fabricar produtos de limpeza. Bem, pelo menos era tudo o que pensavam quando fizeram as inscrições, duas semanas antes. Aos poucos, passado o susto inicial com o aparente caos que contaminava as aulas, eles descobriram que, de fato, haviam embarcado em um projeto muito mais amplo. Era diferente dos empregos anteriores e, em alguns aspectos, pouco parecido com a vida pessoal de cada um. “Na primeira semana, eles batem muita cabeça, querem mandar uns nos outros. Nesse momento, nós só ficamos observando, porque eles precisam notar que daquele jeito não funciona. Quando percebem isso, então nós conversamos com eles e mostramos uma solução. A solução é organizar-se, montar um plano de trabalho e dividir tarefas”, explica Lisandra Lima Santos, 21 anos, técnica de desenvolvimento econômico (TDE) uma entre 200 profissionais formados pelo PAE para dar suporte técnico aos alunos.

As aulas do PAE agem em duas frentes. A primeira e mais aguardada pelos treinandos é aquela em que uma profissão é ensinada. No caso do nosso grupo do Jardim dos Reis, saber misturar ingredientes químicos na medida certa para criar amaciantes, detergentes, água sanitária e desinfetante, em aulas práticas que duram quatro horas diárias. Com tal aprendizado, eles sonham em poder montar um negócio e melhorar a renda.

Bater cabeça

“Eles têm muita vontade de aprender, são esforçados. Mas quando começam as aulas, ficam esperando aquele jeito tradicional de aprender e trabalhar: um só ensina e outro manda, e os demais cumprem ordens. Mas não é isso que a gente quer. A gente quer que eles aprendam a se virar sozinhos, a ter espírito de cooperação e unidade”, explica Francisco Teixeira, professor que trabalhou 18 anos na indústria química e a quem cabe a tarefa de ensinar como se fazem os produtos de limpeza.

Quando aconteceu a escolha do professor Teixeira já estava imbuída do princípio da autogestão. Em lugar de ser contratado por meio de uma agência de empregos ou de classificados de jornal, ele foi descoberto pela própria comunidade. Morador do local, onde há vários anos cuida de uma creche, ele foi indicado ao PAE por lideranças do bairro, no momento em que Lisandra e outros TDEs faziam visitas ao local para descobrir que tipo de curso seriam os mais adequados para ajudar as pessoas que ali moram. Os TDEs passam a viver integralmente nas comunidades um mês, antes da implantação de qualquer núcleo do PAE, com o objetivo de planejar sua ação.

A outra frente de ação dos cursos são as aulas de cidadania, administração e convivência em grupo, ministradas pelos TDEs. São princípios bastante simples, singelos até, transmitidos durante uma hora diária. Dicas de como conviver em grupo, como cuidar da contabilidade, como fazer propaganda da empresa. Numa dessa aulas, por exemplo, ‘os dez mandamentos de um grupo’ foi o tema central. O professor João Batista da Silva, potiguar de 20 anos que se formou TDE em 98, foi enumerando os mandamentos, recheados de comentários de alunos.

1) Respeitar o próximo como ser humano
2) Evitar cortar a palavra de quem fala
3) Controlar sua reações agressivas
4) Evitar pular por cima de seu chefe imediato
5) Procurar conhecer melhor os membros dos seu grupo
6) Evitar tomar a responsabilidade atribuída a outro
7) Procurar descobrir a causa das antipatias
8) Estar sempre sorridente
9) Procurar definir bem o sentido das palavras ditas
10) Ser modesto nas discussões

Consciência – Tudo bem primordial – mas, é preciso reconhecer, de difícil aplicação para a maioria das pessoas. Da combinação desses conceitos e do aprendizado das técnicas produtivas vai nascendo a consciência organizativa que as turmas do PAE adquirem ao longo dos 60 dias em que se encontram em busca do sonho de se tornarem pequenos empreendedores. Seja individualmente ou em cooperativas formadas entre os colegas de turma. Este, afinal, é o objetivo do PAE.

Durante as quatro horas de aula prática é possível ver um pouco do nascimento dessa consciência organizacional. Éder Ledres Alves, que tem 16 anos e cursa a oitava série do Ensino Fundamental, passa instruções a Antônio Pereira dos Santos, pai de um filho e que por 22 anos trabalhou como pedreiro. Por causa da vida dura, Santos não completou a quarta série. Os dois chegam a um acordo em menos de 30 segundos e o trabalho é retomado. ‘Quase toda a minha vida eu trabalhei na construção civil. Lá é uma desorganização muito grande e só uma pessoa manda. Se não mandar, ninguém se mexe”, lembra Santos. “Aqui no PAE eu descobri que dá para se organizar e que um grupo organizado tem mais futuro do que num lugar onde só um manda. Aqui ainda não está muito bem organizado (risos), mas está muito melhor do que no começo, pode acreditar”, completa ele.

Cooperativismo

Para montar a estrutura de comando, os alunos do PAE aprendem a votar as decisões em assembléias, um princípio cooperativista. Todos os sábados, as turmas se reúnem e fazem o balanço da semana e montam um plano de trabalho para o período seguinte. Dentro do mesmo princípio, o grupo escolhe quem vai exercer cada tarefa através de votação, baseado na descoberta das habilidades de cada um. Foi assim, por exemplo, que Maria Geraldo Caetano foi eleita para cuidar do estoque e do controle financeiro. Todos perceberam que ela era a melhor para escrever e fazer contas, apesar de sua timidez. Mãe de três filhos, tendo cursado até a oitava série, Maria Geralda desenvolveu essas habilidades trabalhando como recepcionista. Ela mantém esse trabalho até hoje, numa casa noturna onde ganha R$ 320,00 por mês. “Eu sou uma pessoa que fica com medo de dar a minha opinião, de o pessoal não concordar. Mas isso está mudando com a convivência aqui”, conta ela, enquanto registra em um caderno a chegada daquelas 30 embalagens plásticas para detergentes.

“Acho que vai dar certo. Nós vamos conseguir vender a produção e comprar as próximas embalagens”, conta a aluna Luciene Laurentino, 24 anos, casada mãe de um filho de quatro anos. Até aquele momento, a equipe já havia conseguido produzir mais de 200 litros de produtos químicos. “Vender tudo isso vai ser mais um passo. Esse grupo vai conseguir montar uma empresa “, aposta Luciene.

O que é o PAE

Criado pelo Governo Mário Covas em 1996, por indicação do secretário do Emprego e Relações do Trabalho, Walter Barelli, atual gestor do programa, o PAE é implantado sempre em regiões carentes. Como seu objetivo é prestar socorro em situações crônicas de pobreza, adota o princípio da capacitação massiva, em que centenas de pessoas (mesmo a parcela analfabeta) podem, juntas, desenvolver habilidades rapidamente e descobrir caminhos práticos para vencer o desemprego. Essas centenas e, às vezes, milhares de pessoas em cada comunidade são divididas em pequenos grupos e recebem o mesmo tipo de formação.

A metodologia educacional empregada é de autoria de Clodomir Santos de Morais, doutor em sociologia. O método presume que os alunos possam aprender uma nova forma de interagir com a sociedade, desde que aprendam como funcionam as organizações e possam aplicar tais princípios ao seu dia-a-dia. O PAE já formou 17 mil trabalhadores, estimulou a criação de 453 empresas e de aproximadamente 2.500 postos de trabalho.

Quem são os TDES

A formação dos TDEs começa antes mesmo de eles ingressarem no PAE. Todos os 200 profissionais que exercem essa função já tinham alguma vivência com serviço comunitário e movimentos sociais. Esse, aliás, é um dos critérios de seleção. Possuir o segundo grau é o outro. Depois de passarem pelas provas, os candidatos preparam-se para cinco meses de formação intensiva, em que vão não apenas estudar, mas literalmente morar nos locais destinados aos cursos.

Sandra Melo (foto), 44 anos, diz que sempre foi muito apegada à família. Ela tinha certeza de que não iria conseguir terminar o curso. ‘A descoberta durante o curso de que você pode, não nas formas dos manuais de psicologia, mas fazendo, é incrível. A auto-capacitação é uma forma incrível de descobrir suas possibilidades’, diz Sandra, mãe de um casal de gêmeos de 20 anos, divorciada e chefe de família.

Casado e pai de quatro filhos, João Luiz Rocha Monteiro Corrêa, 38 anos, viu seu conceito de militância política sofrer profundas mudanças depois de fazer o curso de formação de TDEs. A capacitação massiva o impressionou. ‘Eu nunca havia pensado nisso. E nós acreditávamos que a revolução chegaria aos poucos. A capacitação massiva teria acelerado o processo’, brinca ele, que afirma já ter nascido militante político.

Quando a serviço da Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho, os TDEs recebem, através da FAO, salários médios de R$ 1.200,00. Ao ano, em média, eles trabalham em três projetos do PAE, que duram três meses cada um e recebem o nome de Laboratório Operacional de Terreno (LOT).

Em sintonia com aquilo que o PAE espera de seus alunos, os TDEs também são estimulados a tornar-se empreendedores. Muitos deles, ao se formarem, criam ONGs de atuação social e comunitária junto com seus colegas de turma. Assim, passam a ter uma segunda fonte de renda – eles podem vender projetos comunitários para empresas – e a disseminar o conceito de trabalho comunitário. Tanto Sandra quanto Corrêa dirigem ONGs assim.

Hora da pós-graduação

Há três anos, Maria José Santana Ribeiro abriu uma confecção com ex-colegas da turma do PAE. Faz um que ela abandonou o negócio, precipitando a queda dos companheiros. “Se naquela época existisse uma assessoria para nos ajudar, isso não teria acontecido”, suspira Maria.

Seja por persistência, seja por descaminhos do destino, hoje Maria faz parte de um time de 14 Agentes Comunitários de Desenvolvimento (ACDs), formado em agosto para visitar os empreendimentos, descobrir os problemas e propor soluções que evitem o que aconteceu com a sua confecção. “Quando abrimos a empresa, eu fui logo assumindo muitas responsabilidades. Tinha maior espírito de liderança e errei, porque fui deixando todo mundo dependente de mim. Sacrifiquei minha saúde com longas jornadas, perdi meu marido. Não agüentava mais”, lembra ela.

Há outros fantasmas rondando os pequenos empreendimentos, num país onde aproximadamente metade das novas empresas fecham antes dos 42 meses de vida. As almas mais penadas nesse espectro já foram descobertas pelos ACDs: a falta de equipamentos, falta de crédito e falta de visibilidade.

O Banco do Povo entrou no circuito para suprir a falta de crédito. Desde agosto, dentro de um programa experimental na cidade de São Paulo, Banco já concedeu R$ 8.410 a nove empreendimentos (créditos entre R$ 200,00 e R$ 1.660,00). A expectativa é que a abertura de crédito especial para graduados do PAE resolva também a falta de equipamentos. Caso dê certo, o programa vai chegar a todo o Estado.

Quanto à falta de visibilidade, agravada pelo fato de a maioria dos empreendimentos funcionar em residências, a ACD Nair Alves Oliveira tem a solução: “O jeito é sair na rua, bater de porta em porta, informar a vizinhança”, ensina. Foi assim que ela ajudou duas confeitarias a melhorar o desempenho no mês de outubro. Nair, além de ACD, é também TDE e uma empreendedora. Ela participa de uma cooperativa de fabricação de bolsas. “Estou feliz”, garante.

Perfil do empreendedor – Números segundo o Dieese

– 2,16 anos é a média de idade das empresas
– 64% funcionam na casa do responsável sendo que
– 48% dos imóveis já estão quitados
– 77% das empresas têm três sócios
– R$ 2.005,07 é a receita média, enquanto a despesa média é de R$ 1.416,28
– 61% pagam seus fornecedores à vista
– 81% não têm contador
– 62% são controladas por mulheres entre 19 e 35 anos
– 38% dos responsáveis eram desempregados
– 48% não completaram o 1º grau.

Com informações da Revista Emprego & Cidadania, da Sert