Serra discursa no lançamento do projeto Memórias Reveladas, em Brasília

Governador: Quero cumprimentar o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Cumprimentar a ministra Dilma Rousseff, ministra-chefe da Casa Civil – e através dela os ministros aqui presentes. O […]

qua, 13/05/2009 - 23h00 | Do Portal do Governo

Governador: Quero cumprimentar o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Cumprimentar a ministra Dilma Rousseff, ministra-chefe da Casa Civil – e através dela os ministros aqui presentes. O José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal. Queria saudar também os ministros Jorge Hage, da Controladoria-Geral da União, e o Paulo Vanucchi, dos Direitos Humanos. O Tarso Genro, ministro da Justiça. Nelson Jobim, ministro da Defesa. O Juca Ferreira, ministro da Cultura. Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social. Altemir Gregolin, ministro-chefe da Secretaira Especial de Agricultura e Pesca. Ministro Gilson Dipp, corregedor-geral da Justiça. Queria fazer uma saudação especial ao meu secretário da Justiça, que tem conduzido esse processo em São Paulo, Luiz Antônio Marrey. Parlamentares, presidentes de organizações não-governamentais dos direitos humanos, senhoras e senhores.

É com muita satisfação que nós nos somamos a este projeto. Queria dar as minhas congratulações, os meus parabéns especiais ao presidente, à ministra Dilma, ao ministro Tarso Genro, pela iniciativa. São Paulo foi o Estado que primeiro abriu os arquivos. Aliás, quando o (Franco) Montoro ganhou a eleição, em (19)82, vazou para a imprensa que ele ia colocar os arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) no Arquivo Estadual. Isso fez com que, antes que começasse o mandato, esses arquivos viessem para a Polícia Federal, de onde voltaram só em 1991, sabe-se Deus com que taxa de desidratação.

Mas o fato é que foi uma iniciativa pioneira – e nós estamos avançando. A ministra Dilma fez aqui muitas referências e eu vou me permitir, então, não entrar em todo o processo. Mas é interessante a gente ver a ficha dos DEOPS (Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social) paulistas, que são as mais gordas do Brasil. Porque o foco da central da repressão realmente foi São Paulo, nos anos piores. O arquivo oriundo do DEOPS tem um milhão e 400 mil fichas – e quase 10 milhões de folhas de documentos.

Ele está sendo todo digitado, microfilmado, escaneado. Tem coisas curiosas. Por exemplo: a ficha sobre o João Paulo II, o Papa; uma ficha sobre o Berthold Brecht, dramaturgo alemão que jamais esteve abaixo da linha do Equador – e, no entanto, tem a sua ficha lá. Tem uma ficha sobre um cão pastor alemão, que era personagem de uma novela de televisão. Eu não estava no Brasil, então eu não sei que cão era esse. Tem a ficha de um doente mental que foi espancado por não ter confessado a sua participação em um assalto. Confissão que era muito improvável, pois o rapaz também era surdo-mudo – e tem a ficha dele lá.

Com relação a mim, há uma afirmação curiosíssima: de que eu teria chorado em uma comemoração, em uma visita do (Yuri) Gagarin (astronauta russo e primeiro homem enviado ao espaço) a São Paulo, em cerimônia realizada em uma biblioteca, ao lado do embaixador soviético. Eu não quero aqui fazer nenhuma política anti-soviética, mas eu não tinha a menor simpatia pela União Soviética. Imaginem chorar ao lado do embaixador!.Ou chorar por causa do Gagarin, que era um personagem (importante), mas não para merecer lágrimas… (Essa afirmação) está lá, registrada. É uma coisa interessantíssima.

E tem um documento que eu vou deixar para o arquivo. Ele me foi entregue por um jornalista, e eu não tenho aqui o original. Mas é um documento da repressão, nós não temos duvida a esse respeito. Está escaneado e vou fazer a doação para o arquivo, para que tudo depois seja investigado. O documento é escrito a mão, e é de quando eu estava no Chile. Diz assim: “Filho de Francisco e Serafina Chirico Serra”, que era o nome da minha mãe. “Condenado, em 26 de abril de 66, a três anos”, o que é verdade, pela Lei de Segurança Nacional.

Quando assumi o Ministério do Fernando Henrique, eu disse: “Olha, você vai ter aqui, pela primeira vez, um ex-condenado ministro no seu governo” – e me referia a esta condenação…. (O documento) usa também, veja que engraçado, o nome de José Serra Rodrigues de Castro. Não tenho a menor ideia de como me deram este nome. E outro (nome), que era José Serra Chirico – que efetivamente é nome de mãe e, no Chile, a gente é obrigado a botar o nome de mãe, e no final., Chirico também entrou, acabou entrando no meu nome.

(Prossegue a leitura do documento) “Nascido nos anos tanto”, que eu nem vou dizer aqui, “em 18 de novembro de (19)69 recebeu, em Santiago do Chile, o passaporte brasileiro número tal. Tal fato causou o afastamento do nosso cônsul-geral naquele país” – o que é verdade. O Octávio Guinle perdeu a carreira dele por ser distraído. Porque eu era professor, naquela altura, e tinha um aluno que era diplomata e trabalhava no consulado. Vou até falar o nome dele: Clodoaldo Hugueney. Durante muitos anos eu não pude falar. Ele hoje é embaixador na China. Era meu aluno e disse: “Olha, o pessoal do consulado está dando passaporte sem olhar a lista das pessoas que estão proibidas. Você está na lista dos proibidos, mas vai lá e pede o passaporte. De repente eles dão sem olhar na lista”. Eu fui lá pedir e me deram o passaporte. E eu peguei o passaporte brasileiro.

Era uma época… eu tinha 20 e poucos anos… as pessoas que eu encontrava no exterior eram todas jovens com crise de identidade. Sabe o sujeito que vai para longe, não quer viver do dinheiro do pai, quer se afirmar? A minha crise de identidade era outra: eu não tinha documento de identidade. Sabe o que é viver num mundo sem ter papel dizendo nada? Você não tem um papel que você existe. E fui lá e tirei o passaporte. Mas isso foi descoberto porque outros fizeram.

O comandante (Cândido) Aragão fez isso. O Aragão não era como eu. Eu não contei nem para a minha mulher que tinha tirado o passaporte. O Aragão chegou em Montevidéu e falou: “Pessoal, vamos para o Chile que estão dando passaporte”. E isso imediatamente chegou às mãos do (Emílio Garrastazu) Médici (presidente da República no regime militar, de 1969 a 1974). Ele demitiu o Octavio Guinle, que entrou em desgraça.

Informaram as embaixadas no mundo inteiro, e policias do mundo inteiro, que o meu passaporte, que era ilegal, era forjado. De maneira que se eu fosse para algum lugar, eu seria preso com este passaporte – o que aconteceu, aliás, na Venezuela, quando eu fui dar um curso. Eu não apresentei esse passaporte, mas um documento chileno. Mesmo assim, fiquei 4 ou 5 horas detido. E graças a Deus foi o Chirico que me salvou. Eu disse: “Vocês têm aí José Serra, mas sou José Serra Chirico”. Isso para eles era uma confusão muito grande, acabaram ficando em dúvida e me soltaram.

Esse é o episódio que fala do passaporte. (Volta a ler o documento) Depois diz: “José Serra é exilado político no Chile desde 16 abril de (19)64”. Está errado, foi 65. Eu comecei na Bolívia. “No Brasil, era presidente da União Nacional dos Estudantes, organização que se transformou num dos mais eficientes instrumentos do comunismo no nosso país, nos anos 63 e inicio de 64, quando foi dissolvida pelo governo. Era integrante da organização comunista Ação Popular”. Só os comunistas da época não sabiam, porque a gente trabalhava em frente única, mas vivia em atrito. “No Chile, ligou-se à ACBS, Associação Chileno-Brasileira de Solidariedade”. Eu não me liguei. Eu fui um fundador, que se propunha a auxiliar as atividades dos exilados e banidos no Chile. “Não há registro de que desempenhe qualquer função vinculada a ONU (Organização das Nações Unidas)”, o que é mentira.

(Prossegue a leitura) “Em setembro (19)73 encontrava-se ainda no Chile, e constava da relação de elementos ligados à subversão comunista, as quais o novo governo chileno tinha interesse de localizar. Embaixo, observação: esta é súmula de que existe sobre o fulano. Como… aí tem um pedaço ininteligível… trata-se de boa gente, entre aspas, que bem merece ser tratado, entre aspas, pelos chilenos”.

É um documento que me pareceu significativo, presidente, para apresentar e para ver também o teor das coisas feitas na época – que sempre tem uma combinação de repressão, denuncias etc, com coisas erradas. Isso me fascina. As bobagens são muito grandes, e provavelmente ficavam alimentando os circuitos da repressão e da informação.

Mas eu creio que nós avançaremos, ao longo do tempo, no sentido da descoberta, da revelação de tudo o que aconteceu. Isso é importante, pois revela, inclusive, do ponto de vista histórico, porque a história serve para a gente compreender o país, que tipo de informação era passada ao Estado, qual era a visão que se tinha do mundo e das coisas. O seu conhecimento fortalece o apreço à democracia, o repúdio a qualquer forma de totalitarismo…

Por isso que fizemos… o (ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República) Paulo de Tarso (Vanucchi) esteve lá… o Museu da Resistência, em São Paulo, nas celas do antigo DOPS, onde vários estiveram presos. E, sem dúvida nenhuma, é um elemento da nossa cultura hoje, da nossa sociedade, da nossa política. Eu sou ardoroso defensor de que as coisas sejam cada vez mais conhecidas, que sejam mais analisadas, que tudo aquilo que aconteceu seja melhor compreendido.

Eu queira cumprimentar, na memória, o governador Franco Montoro, que começou este trabalho. E, hoje, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela estruturação do conjunto deste trabalho. Estou convencido de que zelar por este acervo, facilitar o acesso a ele, não é abrir feridas e reavivar dores, não. É cumprir um dever. É nessa ótica que deve ser encarado. É cumprir um dever de preservar a memória do nosso país. De compreender melhor a sua história. Porque a memória e o conhecimento da história são fundamentos da nossa identidade como Nação e, se Deus quiser, da nossa afirmação crescente como democracia, como regime de liberdade, de respeito aos direitos humanos e aos direitos individuais.

Muito obrigado!