Serra concede Ordem do Ipiranga a personalidades do Poder Judiciário

São Paulo, 7 de dezembro de 2009

seg, 07/12/2009 - 23h00 | Do Portal do Governo

Governador José Serra: Queria dar o meu boa noite a todos e a todas. Hoje, para nós aqui, é um dia muito especial porque, na presença do ministro Gilmar Mendes, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), estão reunidos 9 dos seus ex-presidentes para receber o que para nós é a mais elevada honraria do Estado (de São Paulo), a Ordem do Ipiranga no grau da Gran Cruz.

Qualquer instituição, não apenas o STF, se faz pelo trabalho conjunto de seus membros. Mas, de certo modo, nós podemos dizer que esses 9 ministros sintetizam 21 anos da história do Tribunal, para não dizer da história do Poder Judiciário do Brasil neste período. Uma trajetória que se iniciou em 1985, quando o ministro (José Carlos) Moreira Alves assumiu a presidência do STF.

Eu me recordo até hoje, ministro, da abertura da Assembléia Nacional Constituinte, quando Vossa Excelência proferiu um discurso, dissertando inclusive sobre o que representava uma Constituinte, uma nova Constituição. Uma sessão, aliás, bastante tumultuada – não pelo seu discurso, (mas) pelo meio ambiente então prevalecente.

Em sequência, tivemos os ministros Luiz Rafael Mayer, José Néri da Silveira, Aldir Guimarães Passarinho, Sydney Sanches, José Paulo Sepúlveda Pertence, Carlos Mário da Silva Velloso, Marco Aurélio Mendes de Faria Mello e Nelson Jobim, cuja presidência terminou em 2006. A ministra Ellen (Gracie) já foi agraciada pela Ordem em outra oportunidade.

Esses 21 anos foram, na verdade, cruciais para o avanço da democracia no Brasil e para o avanço na sua consolidação. A partir de outubro de 1988 uma nova ordem constitucional passou a reger o Brasil, ampliando desde logo os direitos civis, políticos e sociais. Mas, para que o Estado de Direito tenha plena vigência e seja capaz de proteger as pessoas e as instituições, é indispensável – todos nós sabemos, é uma banalidade dizer isso, mas não deixa de ser profundamente verdadeiro e precisa ser constantemente relembrado – é indispensável um Poder Judiciário forte, independente e respeitado.

Neste processo, que mobilizou amplamente a sociedade brasileira, o papel do STF, dos seus presidentes e dos seus ministros foi fundamental. Dois mineiros, dois paulistas, dois gaúchos, um paraibano, um piauiense e um carioca – ou dois, se além do ministro Marco Aurélio, considerarmos que o ministro Moreira Alves se declara sempre ser um carioca de Taubaté. Entretanto, pouco interessa, na verdade, o Estado natal de cada um dos homenageados. Senão para justamente exaltar o orgulho dos seus conterrâneos. Porém, o orgulho maior é o de todos os brasileiros, por ter esses magistrados como compatriotas.

Não é fácil assumir as responsabilidades que eles assumiram. E isso não pela exigência de um profundo conhecimento das leis, da doutrina de Direito e da Jurisprudência, conhecimento que jamais lhes faltou, até por serem eles um pré-requisito para o exercício das funções que lhes couberam. Eu digo que não é fácil assumir essas responsabilidades porque elas implicam muitas limitações de vida, uma enorme sobrecarga de trabalho, além de um compromisso ainda mais intransigente com a ética, com a moralidade, com a probidade, do que aquele que se impõe a homens e mulheres de bem em geral.

Todos os homenageados tiveram um início de vida similar, bacharelando-se em Direito, militando na advocacia, com frequência exercendo o magistério universitário, publicando livros e artigos para serem alçados à mais alta Corte do País – e depois dela ocuparem comando. Mas similitude não quer dizer, evidentemente, identidade. Similitude não apaga traços e marcas individuais. Daí por que vale a pena destacar algumas particularidades de suas diferentes atuações.

O ministro José Carlos Moreira Alves é um civilista reconhecido, um dos principais redatores do atual Código Civil. A sua presidência (no STF) coincidiu com um momento crucial da transição democrática, quando o Governo da República voltou às mãos de um civil. Durante o seu período à frente do STF, presidiu a instalação da Assembléia Nacional Constituinte e assumiu, por uma vez, a presidência da República. O fato, porém, não o impediu de continuar a exercer o magistério. Foi certamente o único presidente da República que diariamente deixava o Palácio do Planalto para dar aula na UNB (Universidade de Brasília). Entre seus alunos estão os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Como se vê, o ministro Moreira Alves deixou uma descendência de alunos, bastante heterodoxa… heterogênea, digamos assim.

O ministro Luiz Mayer, pouco depois de se formar na Faculdade de Direito do Recife, foi prefeito do Município de Monteiro, na Paraíba, seu Estado natal – o que lhe deu uma experiência pessoal relativamente ao Poder Executivo. Nomeado para o Supremo em 1978, era presidente deste Tribunal quando da promulgação da Constituição. Se compararmos a Magna Carta a uma criança – hoje, aliás, um adulto maior de idade – podemos dizer que o ministro Moreira Alves presidiu a sua concepção e o ministro Luiz Mayer, o seu parto.

O ministro José Néri da Silveira foi um dos pioneiros da re-instauração da Justiça Federal no Brasil. Além de presidente do Supremo, o foi também do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), quando deu o mais importante impulso para a implantação universal do voto eletrônico, levando-o a cidades pequenas.

O ministro Aldir Passarinho teve passagem breve na presidência do STF, pois logo se aposentou. Mas teve uma importante passagem na sua carreira como magistrado. Por exemplo: enquanto juiz federal, no antigo Estado da Guanabara, presidiu o Primeiro Tribunal do Júri na área federal. Foi também muito atuante na AMB, Associação dos Magistrados Brasileiros, integrando o seu Conselho Deliberativo à época em que Sydney Sanches foi o seu presidente.

Sydney Sanches, enquanto presidente do Supremo, presidiu o Senado Federal no julgamento do então presidente (Fernando) Collor (de Mello). Sua segurança, equilíbrio e cautela muito contribuíram para que se evitasse uma crise institucional, em um momento de muita tensão nacional. Fez, portanto, com que as coisas permanecessem nos trilhos constitucionais, mostrando-se digno herdeiro de seu pai, que era ferroviário.

O ministro Sepúlveda Pertence começou na política participando do movimento estudantil, chegando a ser primeiro vice-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) no biênio 1958-59. Isto, em um primeiro momento, nos aproximou, pois também fui presidente da entidade coincidindo com 1964 – outros tempos da UNE, diga-se de passagem, que era de fato uma entidade de massa. Depois, foi promotor de Justiça do Distrito Federal, professor da UNB, foi cassado. Tudo isso, junto, lhe deu direito a uma dupla cassação, como promotor e como professor. No Governo Sarney, foi procurador geral da República, por escolha de Tancredo Neves. No Supremo, na sua presidência, deu uma inestimável contribuição para a proposta de emenda constitucional que transformou na reforma do Poder Judiciário de 2004. É um homem bem humorado – e reza a lenda que, durante o julgamento da extradição de um certo Sr. Walker, ele perguntou ao ministro (Nelson) Jobim qual o pré-nome do extraditando, porque se fosse Johnny ele teria que declarar a sua suspensão no voto.

Mas, com o Pertence e com o ministro Velloso eu tive uma experiência pessoal. Em 1993 o Congresso Nacional aprovou uma lei eleitoral que, por obra e arte dos constituintes, estabeleceu-se que tinha que ser promulgada um ano antes da eleição. Eu me lembro até hoje do Ulysses (Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte) dizendo que isso ia dar confusão. E foi aprovada uma lei com um relator baiano. Como o relator era baiano, e adversário do Antonio Carlos (Magalhães), fez um dispositivo que proporcionava tempo fixo para os senadores, igual para todos – independentemente do tamanho do partido, independentemente de qualquer coisa, o mesmo tempo – que me pareceu absurdo.

Na época, eu era candidato a governador, não a senador. Mas depois aterrissei como candidato a senador. Fui então ao TSE, procurei os ministros que eu conhecia, para argumentar que este dispositivo devia ser reinterpretado. Sinceramente, não me lembro qual era a minha análise jurídica a esse respeito. Conversei com Pertence e com o ministro Velloso – ambos eram integrantes. Saí de lá convencido de que eles acolheriam a nossa representação. Mas fui absolutamente convencido de que dariam uma interpretação que eu considerava correta, de que o tempo do candidato a senador devia ser proporcional, um fator pelo menos de proporcionalidade em relação ao tempo, ao tamanho de cada partido.

Saí (convencido) não porque eles tivessem afirmado, mas pelo tom, pela simpatia, pela compreensão. Depois, fui derrotado por unanimidade no Tribunal. Essa é uma lição que eu nunca mais esqueci na prática – a gente até ouve falar assim, mas outra coisa é sofrer essa experiência na prática…

O ministro Carlos Velloso, filho de juiz, pai de quatro advogados, tem o DNA – poderíamos dizer assim – do Direito no sangue. Começando como juiz federal, fez uma carreira meteórica. Em 10 anos chegou ao Tribunal Federal de Recursos e, mais tarde, ao STF. Magistrado de muito destaque, é professor emérito da UNB e, entre os seus alunos, esteve a ministra Carmem Lúcia. Quero dizer que o ministro Velloso era presidente do TSE quando eu era ministro do Planejamento – e nós é que alocamos o dinheiro, o recurso para a urna eletrônica, que vingou no Brasil, mas foi a partir do momento em que pusemos o dinheiro no orçamento, em 1995 para 1996.

O ministro Marco Aurélio, muito jovem, aos 35 anos, foi ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST); com 44, era ministro do STF. Quando à frente do Tribunal, por 5 vezes exerceu a presidência da República, (em) duas delas, eu tive a oportunidade de visitá-lo. Foi quando sancionou a Lei da TV Justiça.

O ministro Nelson Jobim é um caso raro, pois ele é um dos 3 ministros do STF nascidos em Santa Maria da Boca do Monte, no Rio Grande do Sul. Boca do Monte, em geral, o pessoal de Santa Maria esconde. Os outros dois são o falecido ministro Carlos Maximiliano e o atual ministro Eros Grau. Parodiando Noel Rosa, podemos dizer que São Paulo dá café; Minas, dá leite; e Santa Maria da Boca do Monte, dá ministro do Supremo. Pelo tamanho da cidade…

Ele (o ministro Nelson Jobim) foi duplamente meu colega. De um lado, porque compartilhamos a experiência da Assembléia Nacional Constituinte. Na verdade, triplamente, se pode se usar o termo. Na Constituinte, trabalhamos juntos. Eu, inclusive, nunca hesitei em assumir a minha co-responsabilidade na idéia do Jobim – mas eu fui, talvez, o principal impulsionador da instituição da Medida Provisória no País – e não é muito popular fazer esse reconhecimento em público. Ele foi, de fato, quem teve a idéia, e eu fui, talvez, quem mais tenha batalhado individualmente por ela.

Segundo, porque dividimos o mesmo apartamento por uns tempos, em Brasília, e foi um dos períodos em que menos nos vimos, porque ele ia dormir cedo. Quando eu chegava, ele estava dormindo. E quando ele acordava, eu apenas começava o meu sono, de maneira que passávamos semanas sem nos encontrar, embora vivêssemos no mesmo apartamento. E, finalmente, como ministros, fomos colegas no Governo do (ex) presidente Fernando Henrique (Cardoso) quando eu ocupei o Ministério do Planejamento e ele o da Justiça.

Por outro lado, é interessante lembrar que, como deputado, ele foi relator da revisão constitucional, grande medida frustrada por fatores alheios à sua, à minha e à vontade de muitos, em (19)93/94. E foi o mentor do Conselho Nacional de Justiça, e seu primeiro presidente.

O Rui Barbosa ressalta, em um texto muito conhecido, “Oração aos Moços”, que “o eixo das democracias é a Justiça. Eixo não abstrato, não meramente moral, mas de uma realidade profunda e tão seriamente implantado no mecanismo do regime que, falseando ele em seu mister, todo o sistema cairá em paralisia e desordem. Os poderes constitucionais entrarão em conflitos insolúveis, as franquias constitucionais ruirão por terra e, da organização constitucional, do seu caráter, das suas funções, e suas garantias, apenas restarão destroços”. E conclui: “Eis do que nos há de preservar a Justiça brasileira, se a deixarem sobreviver”.

Pelo que vimos esta noite, e pelo que acompanhamos ao longo dos 21 anos, os nossos homenageados se emprenharam na preservação da Justiça brasileira e dos valores por que ela zela. Se empenharam no seu avanço, no aprimoramento das instituições, na defesa dos cidadãos e da sociedade. Daí porque os brasileiros de São Paulo lhes outorgam esta noite a Gran Cruz da Ordem do Ipiranga, uma distinção que celebra o momento inaugural do Brasil como Nação soberana – e que honra aqueles que trabalharam, como continuam a trabalhar, pelo desenvolvimento do nosso País, do nosso povo e também do nosso Estado.

E é para mim uma honra muito especial presidir a entrega dessa Ordem. Eu quero dizer… tenho repetido sempre que um Governo não define a sua qualidade apenas pela qualidade dos seus integrantes, mas também pela qualidade daqueles que homenageia. Para nós, é um privilégio homenageá-los.

Muito obrigado!