Homenagem a Sérgio Motta

Dez anos de morte do ex-ministro da Comunicação do governo FHC

seg, 02/06/2008 - 19h17 | Do Portal do Governo

Governador: Bem, eu não preparei nada para dizer. Eu queria aproveitar para evocar algumas coisas da vida do Sérgio Motta e da minha convivência com ele. Eu conheci o Sérgio no cursinho Anglo Latino, na Rua Tamandaré, 1959. Eu acho que é um personagem curioso.

Eu fui apresentado por um vizinho meu, o Adroaldo Wolf, que eu nem sei se está aqui hoje. Sérgio andava sempre de capa, eu não sei por quê. Chuva ou sol, de capa fininha, que era moda na época. Fumava e era são-paulino. Eram as três características dele.

Outro dia, a Renata me mandou um e-mail. A Renata é a filha dele, a mais nova, me dizendo o seguinte: que o Serginho, o neto, que ele, infelizmente, não chegou a conhecer, é palmeirense. É interessante isso. Fiquei bastante sensibilizado. É que na minha comunicação com o Sergio, não deixei de fazer uma gozação a esse respeito.

Depois, nós nos reencontramos já na Faculdade. Eu estava na Politécnica e fui eleito presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo. E o Sérgio, o Egídio, o Gouveia, que aqui está também – e vários outros que eu não vi, mas que, certamente, há outros aqui – tinham acabado de entrar na FEI, na Faculdade de Engenharia Industrial.

O Sérgio, apesar de ter trabalhado em projetos de engenharia, hidrelétricas, trânsito, etc., era engenheiro químico. Nunca se preocupou com a tetravalência do carbono, mas, em compensação, passou a entender de obras.

Eles vieram trabalhar comigo na UEE. Foi uma tropa, chamemos assim, de choque que nós tínhamos. Gente que trabalhava com disciplina, com entusiasmo, com garra, na mesma época em que vieram outros, de outras faculdades, como é o caso do Luiz Carlos Mendonça de Barros, que eu creio que o Sérgio conheceu, lá mesmo, na UEE.

E assim trabalhamos com muita garra nessa entidade, fazendo muita agitação durante um ano, pelo menos. Depois, eu fui candidato à presidência da UNE, da União Nacional dos Estudantes. O Sérgio, e o Egídio e o Gouveia faziam parte da minha linha de frente para poder ganhar a eleição dentro da AP, porque a AP era maioria e a decisão da UNE era uma decisão dentro da AP, de tal maneira pela hegemônica do movimento estudantil.

Eles foram, também, o meu grupo de choque e de persuasão, também, porque nós não tínhamos nenhum favoritismo. Éramos os menos cotados para assumir a UEE, mas aí entre brigas de mineiros, baianos, gaúchos, acabou sobrando o candidato de São Paulo.

E, aí, o Sérgio entrou na diretoria da UEE, ele e o Egídio. Eles eram da diretoria. Continuamos trabalhando juntos nesse período. Eu não desgrudava de São Paulo e, um dia, nós estávamos num restaurante árabe, lá na rua Cubatão, no alto da Cubatão, lá hoje tem vinhos, o chamado Bambi. Ainda está lá.

E no Bambi tinha um sorvete, que eu não sei se tem até hoje: Chocolamour. Cerveja. (Inaudível)… Eu não estou nem dizendo em que época foi. Chocolamour poderia ganhar um prêmio de antiguidade. E o Sérgio estava comendo o chocolamour. Nós estávamos na mesa e a Vilma, por incrível que pareça, era tesoureira da gestão que me sucedeu, que era do Tota, que eu não sei se está aqui. Está lá o Tota. O Tota me sucedeu na UEE e a Vilma era a tesoureira. E, de repente, eu flagrei um olhar do Sérgio para a Vilma. Eu flagrei. Eu falei: Você está dando em cima dela. Ele brigou, evidentemente: Que é isso, não sei o que, não sei o que lá e etc. E estava, evidentemente.

Bom, depois veio o golpe. Eu voltei ao Brasil, depois do golpe, clandestino, porque eu saí exilado da Bolívia. De lá, fui para a França e da França voltei ao Brasil com passaporte falso. Hoje a gente pode dizer. Com passaporte falso, voltei ao Brasil e fiquei oculto. O Maurício Segal me guardou naquela época. O Maurício Segal e a Beatriz Segal, que até hoje é amiga minha. Convivemos meses, porque eles ficaram me guardando na casa de um casal belga amigo  deles.

Um dos meus pontos de contato – porque eu estava clandestino – era o Sérgio. Outro era o Egídio. Eu lembro até que para ir a lugares não identificados, a gente se encontrava no Largo da Concórdia, na Praça Marechal Deodoro, num botequim qualquer, e tal.

Nesse período, numa noite, eu fiquei noite brigando com (incompreensível). Eu brigava menos. Com Egídio, quase nada. Brigava bastante com o Sérgio. Agora, briga entre o Sérgio e o Egídio era imbatível. Eles tinham um encontro estudantil da AP marcado para o dia seguinte, que ia ser num lugar chamado Graal, que aliás eu nunca conheci.

Ia ser no Graal. Vinha gente do Brasil inteiro. Alguns morreram, depois, nas mãos da repressão. Eu queria ir, ninguém sabia que eu estava aqui. Eu queria ir, queria ver a sensação que ia causar e, também, eu achava que, já não eram mais, mas que eram todas as minhas bases. Só que o tempo já tinha passado. Um ano e tanto.

Ficamos no apartamento do Egídio no IAPI, do Alto da Mooca, discutindo a noite inteira se eu ia ou se eu não ia. Eles se opuseram a que eu fosse.  Finalmente, eu desisti de ir.

No dia seguinte, eu liguei para lá e atendi uma mulher que dizia uma coisa que eu não entendia, mas ela insistia. Era a Marli, que também está aqui. A Marli, segundo eu soube depois, estava dizendo: Dops, Dops, Dops, porque estavam saindo todos assim com água em cima e eu lá, querendo xeretar para saber o que é que estava acontecendo. Mas, depois, eles foram presos e eu me baseio muito nessa prisão, às vezes, para tirar a paranóia da cabeça, enquanto aqui os adversários sabem.

Às vezes, a gente maximiza que adversário sabe tudo. O Egídio foi pego com uma pasta, porque o Egídio tem mania (o Sergio também) de pôr tudo no papel e ficar carregando junto. Ou deixando em lugar escondido óbvio. Eles têm essa mania. Eu, por exemplo, jogo tudo fora. O que não ficar na memória, acabou.  Mas o Egídio tinha essa mania. O Sérgio também.

Uma vez ele foi assaltado, não faz muitos anos, e roubaram a pasta do Sergio. Pois bem. O Egídio tinha papéis mais do que comprometedores. Pensamos: Estamos perdidos, porque agora vão pegar todo mundo. Mas o fato é que o Dops pegou e não entendeu nada dos papéis. Eu sempre penso isso. Nunca se deve dar informação ao adversário mais do que o necessário. Ou seja, nunca se deve dar de barato que eles sabem aquilo que a gente sabe, porque a incompetência é muito grande, também, nos serviços de repressão. E aí eles acabaram saindo. Mas depois da queda de todo mundo, não houve mais condições de eu permanecer no Brasil. A minha idéia era permanecer, aqui, na clandestinidade, o que era inviável.

Então, eu fui, de novo, para o exterior. Só que nós escolhemos um caminho heterodoxo. O Maurício Segal tinha um advogado que quebrava o galho de tudo, até me tirou passaporte, na base do quebra galho. Com despachante, etc.

Com esse passaporte, que era em meu nome, eu não tinha passaporte, era muito arriscado viajar. No aeroporto era impossível. Aí, escolhemos o porto. Raciocinamos: Ninguém vai fugir pelo porto. Fugir Pelo porto de Santos seria uma coisa inusitada. Então, decidimos que eu iria pelo Porto de Santos. Aí, o Sérgio tinha ou arranjou um Fusquinha e fomos nós dois para o Porto de Santos. Ele, aliás, entrou no navio. Fomos olhar, ver o camarote, etc., tal, e, aí, eu viajei.

A partir daí, eu não vi o Sérgio até voltar ao Brasil, em 1977, quando eu voltei para ser preso. Voltei para ser preso. Sabia que ia ser preso, claro, mas voltei, porque não dava mais para permanecer no exterior. Estava nos Estados Unidos, ia ter que renovar contrato, com a seqüência de longo prazo. Eu resolvi voltar pelo Peru, para não parar no Rio de Janeiro. O receio era o Rio de Janeiro, por causa dos meus antecedentes no Rio de Janeiro, que eram piores do que em São Paulo.

Então, voltamos pelo Peru e descemos em Viracopos. Em Viracopos, eu não fui preso. O delegado que me encontrou me fez um interrogatório para estudantes brasileiros que tinham estudado na Universidade Lumumba, na União Soviética. Evidentemente, não deu em nada.

O Sérgio estava no aeroporto. Eu não sei como é que ele soube, porque foi uma chegada secreta, mas estava o Sérgio no aeroporto. A partir daí, recomeçamos uma trajetória muito comum, muito próxima, que se reaqueceu, imediatamente, na campanha do Fernando Henrique de 1978, quando o Sérgio cuidou da campanha. Até aquele caminhão que rolou uma vez na Sena Madureira com possibilidade de um desastre, de uma hecatombe, foi o Sérgio que arranjou. O Sérgio providenciou o material. Não tínhamos muito recurso, mas ele fez, de fato, aquela campanha e prosseguimos nesse trabalho conjunto, na tentativa de fundar outro partido, depois na decisão de permanecer no PMDB, depois na vinda dele para o governo Montoro, na Eletropaulo.

Depois, ele participou de todas as campanhas, coordenou a campanha do Fernando Henrique em 78, campanha do Fernando Henrique em 85, a campanha do Mário Covas em 89, a campanha do Fernando Henrique e do Covas em 86. Ele é o grande organizador, como foi, eu sou testemunho, na campanha de 94.

Nós estávamos reunidos no apartamento do Fernando Henrique e eu fiz a sugestão: Bota o Sérgio coordenando a parte de comunicação, que a parte de comunicação vai ser chata na campanha. Ele coordenou e foi um grande vitorioso naquela campanha.

Portanto, a minha vida, depois de voltar ao Brasil, se confunde com a trajetória do Sérgio. E ele era um homem, quando ele morreu, todo mundo dizia: Quem vai ocupar o lugar do Sérgio? Eu dizia: Ninguém, porque o Sérgio nunca obteve um lugar pago, concedido. Ele cavava os seus espaços. Ele cavava, de maneira que não é uma coisa de transferir uma herança. Ele sabia cavar espaços, sabia se tornar indispensável, porque fazia as coisas com empenho e com competência. E, neste sentido, atuava, generosamente com relação aos seus amigos. O Sérgio não monopolizava as idéias. Se ele tinha uma boa idéia para alguém, ele dava e não reclamava o crédito.

Eu acompanhei, estava a Vilma, tinha um par de médicos, eu não sei quais das suas filhas que estavam lá, onde ele foi a Denver, no Colorado, para fazer exames médicos. Ele não estava bem já, tinha que andar com aquele bendito carrinho, que trazia o oxigênio. Lá no hotel, eu fui acompanhar, para saber. Ele que estava …(incompreensível) nada, mais para fazer companhia. Eu ia assumir, tinha decidido, afinal, depois de alguma hesitação, assumir o Ministério da Saúde.

E o Sérgio, o que é que ele fez? No meio daquela confusão, médicos, tratamento, alguma desilusão quanto às possibilidades de cura? Ele escreveu duas ou três páginas, que eu tenho – não sei onde estão, mas eu tenho, porque eu não jogo papel fora – dizendo, item por item, o que é que eu deveria fazer no Ministério da Saúde.

Estava toda a instrução, até com os nomes das pessoas. Tem que levar fulano, tem que levar sicrano, não leve beltrano. Isso eu nunca vou poder divulgar isso um dia. Tem que esperar todo mundo morre, para depois soltar. Não leve fulano, leve sicrano, leve fulano. Mas vocês vejam só. Para alguém que está numa condição péssima de saúde, num momento difícil, de desilusão, dedicar duas ou três páginas botando, com aquela letrinha desenhada que ele tinha, item por item o que ele achava que eu deveria fazer no Ministério da Saúde.

Isso é para ilustrar o lado, o lado mais generoso da personalidade dele. Era um homem generoso. Quanta e quanta gente o Sérgio ajudou quando, na clandestinidade aqui, ou gente que voltou do exílio, logo no começo. Quanta gente ele ajudou. Vocês não calculam. Eu não vou citar nomes, mas isso do que eu sei. Imaginem quantos eu não sei, que ele até ocultava, dizendo que alguns eram muito chatos, mas ele ajudava igualmente. Era um espírito aberto, generoso, para fazer o bem para o círculo de pessoas que dele se aproximavam.

Deixou-nos de uma forma muito triste, prematura, precoce. Vou dizer uma coisa: a melhor forma de ele viver é na lembrança. Isso eu disse na catedral, na missa de sétimo dia. Ele vai continuar vivendo entre nós, pelos seus exemplos e pelo diálogo que cada um tem com ele. Quantas vezes eu me surpreendo, dizendo para o Fernando Henrique: Ah, se Sérgio estivesse aqui. Ou para alguém: Olhe, o Sergio resolveria isso.

Essa é a melhor maneira de se viver para a posteridade. A Vilma, a Renata organizaram, mais o Luiz Carlos Mendonça, o Egídio, organizaram esse instituto e organizam também a família o prêmio. É um prêmio que eu chamaria pós-contemporâneo, porque são formas de artes as mais avançadas possíveis. Não são pós-modernas, são pós-contemporâneas, que bate bem, também, com o espírito inovador do Sérgio, de ir para frente, de se meter, de fazer e estar muito ligado – isso foi dito aqui, eu queria reiterar – muito ligado à arte, ao teatro, à música. Ele tinha paixão por isso.

Aliás, quando foi enterrado, foi a pedido dele, eu presumo – ou idéia da Vilma,  interpretando o que ele teria pedido – com a música cantada pelo … (incompreensível), “As Rosas Não Falam”, do Cartola. Isso reflete bem tudo aquilo de que ele gostava na vida e que foi também… (incompreensível).  

Eu lembro, aliás, o trajeto que percorremos pelas ruas de São Paulo. O povo sabia que era o Sérgio Motta sendo enterrado. Eu nunca vou esquecer o Raul Cortez, também que nos deixou, esperando na avenida para fazer sua saudação ao Sérgio. Foram dois bons amigos que vão continuar conosco pelo que eles foram e pelo que eles representam para a gente.

Muito obrigado.