Discurso de Serra sobre o legado de Franco Montoro

Pronunciamento aconteceu na segunda-feira, 16

qui, 19/07/2007 - 8h39 | Do Portal do Governo

Pronunciamento do governador José Serra após o seminário O Legado de Franco Montoro, realizado na segunda-feira, 16, e promovido pela Fundação Memorial da América Latina, na Barra Funda, zona Oeste da Capital.

Um homem de Estado completo.

… Foi senador, foi vice-ministro e depois ministro da Fazenda do governo Eduardo Frei, que era um grande amigo de Montoro, e depois um grande batalhador, e muito corajoso, pela redemocratização do Chile. Eu queria cumprimentar nosso secretário de Ensino Superior, dr. José Aristodemo Pinotti, o Barros Munhoz (eu sempre tento ler sem óculos, não adianta), o deputado estadual que é líder do governo na Assembléia Legislativa; o Ricardo Montoro, que é secretário municipal de Participação e Parceria; queria cumprimentar o Fernando Leça, da Fundação Memorial da América Latina; e o José Augusto, que é coordenador acadêmico do Projeto Legado de Franco Montoro. Queria também cumprimentar o meu colega de governo Montoro Marcos Fonseca, que é da Faculdade de Economia, e a todos e a todas.

Bem, eu normalmente falaria de improviso, mas o José Augusto quer publicar minhas palavras e, para mim, quando pego transcrição daquilo que falo, não tem muito a ver com escrever. Não combinam as duas coisas. E acaba dando um trabalho dobrado para depois transformar num texto. De maneira que eu optei por preparar o texto, um certo roteiro. Eu creio que a gente podia resumir as características essenciais de homem público do Montoro em oito tópicos, que a meu ver contribuem, cada uma deles já é uma totalidade em si, mas são todos lados, digamos, fatos do mesmo poliedro montoriano.

Uma primeira característica, talvez, é dos atributos que ele tinha como homem público.                              

Alguns governantes se destacam pela capacidade de representar um povo, provocar identificação, trazer aprovação. Outros se destacam pela combatividade, lutam por uma causa, contra uma ameaça ou contra um adversário. Outros, ainda, são grandes realizadores.

São três características que distinguem os diferentes políticos.

Com qualquer desses perfis, é possível obter sucesso pessoal grande no governo, para quem souber explorar uma dessas qualidades em detrimento das demais, ou seja, capacidade de mobilizar, capacidade de combater ou capacidade de realizar. Quem sabe explorar uma dessas características em detrimento das demais às vezes pode obter um sucesso pessoal, mas com sérios prejuízos ou insuficiências para a sociedade.

Creio que Montoro tinha um pouco das três. Tinha uma  grande capacidade de identificação, era capaz de mobilizar  e foi um grande realizador. Acho que essa era uma característica. Não era um homem concentrado num desses três atributos, mas tinha um pouco dos três.

O segundo aspecto é de homem de idéia e homem de ação. Não quero ser machista aqui, de usar de apenas homem, podia fazer com a mulher, especialmente no caso chileno.  Um homem de idéias pode seduzir pela palavra, mobilizar corações e mentes, mas não é capaz de aglutinar pessoas em torno de objetivos e ações concretas. Tem pouco sentido prático, e freqüentemente sua ação se esgota na manifestação de idéias, mas os objetivos são raramente atingidos.

Já o homem de açãoé alguém que é praticamente engolido pelo sentido prático, pela necessidade de ajustar-se às dificuldades, de transigir para obter aquilo que é possível, e afasta-se, com isso, do ótimo.

Creio que o Montoro também era uma combinação desses dois.  Era um homem de convicções, sempre perseguindo as idéias da democracia, liberdade e justiça, da democracia representativa e participativa, mas também não sacrificava as realizações, o alcance dos resultados possíveis, em troca da pureza dos ideais inatingíveis.

O terceiro aspecto é o da austeridade versus realizações. Costuma-se às vezes comparar governos de acordo com a preocupação com a austeridade, ou seja, com o saneamento financeiro, a estabilidade econômica, cautela nas decisões ou, ao contrário, a sua inclinação para o desenvolvimentismo, decisões audaciosas, a prioridade ao crescimento em detrimento da estabilidade.

Eu creio que Montoro era as duas ou nenhuma das duas. Depende. Fez um governo de grande austeridade – as finanças foram saneadas, o endividamento foi posto sob controle, houve equilíbrio do orçamento e racionalização do gasto. Mas ao mesmo tempo também fez grandes programas de investimento: estradas vicinais, expansão do Metrô, a hidrovia do Tietê. Um sem número de obras realmente imensas, até a hidrovia do Tietê, que estava longe de ser uma obra pequena.

De alguma maneira combinando, mostrando a possibilidade das duas coisas, o que não impediu, evidentemente, de sofrer um grande desgaste, por todo aquele processo de saneamento, de recuperação econômico-financeira do Estado, depois da devastação dos anos anteriores, era o governo de Paulo Maluf.

Um quarto aspecto é campanha eleitoral versus governo.

A campanha eleitoral, em geral – acho que isso vale para todos os países, mas para o Brasil muito especialmente; para o Chile, por exemplo, vale menos – é entendida como um tudo ou nada,  em que o único objetivo é ganhar votos, custe o que custar, e o futuro governo é uma miragem de promessas.

O governo, em contraste, não teria qualquer compromisso com as expectativas criadas, mas sim com a sobrevivência dos eleitos. Isso é a coisa mais comum que se tem. Uma coisa é governo, outra coisa é governar, uma coisa é ganhar eleição, outra coisa é governar. Há um divórcio realmente imenso, em geral nos diferentes países, mas muito especialmente no nosso.

Montoro inovou nesse aspecto, na adoção da Proposta Montoro de Governo, que foi construída em plena campanha, lá na Madre Teodora, com grande participação da sociedade, se tornou uma referência na administração e efetivamente estabeleceu parâmetros para as decisões e prioridades na execução. É muito interessante, talvez tenha sido a primeira – ou a última vez – em que um programa aqui em São Paulo se traduziu de maneira tão impressionante na prática do governo. Aquilo que foi dito na campanha virou programa de governo e foi efetivamente implantado, com tudo o que era possível.  

Um quinto aspecto é o da democracia e participação. Em geral, a teoria política distingue os governos representativos dos governos assembleísticos, em que prevalece a participação direta.

Muitos governantes, que chegam ao poder pelo sistema representativo, empregam, à sua conveniência, a mobilização das ruas como instrumento de intimidação e cerceamento da representação eleita pelo voto popular.

Já Montoro tinha, como nós temos, a convicção de que a  democracia representativa é a fonte da legitimidade dos governantes, mas ao mesmo tempo estava convicto de que a participação direta podia complementar e aperfeiçoar o exercício do poder. Sem conflito com a democracia representativa.  Nunca permitiu que a participação dos grupos, instituições e coletividades pudesse se sobrepor ao mandato popular. Mas ao mesmo tempo estimulava essa participação. Nós nos lembramos sempre disso: descentralização, participação e geração de empregos.

O sexto aspecto é o do poder versus onipotência. Acho que uma máxima do cinismo político brasileiro resume o Poder Executivo à sua expressão mais simples: o governo nomeia e demite, prende e solta – máxima que hoje é redefinida, já que prender e soltar está fora de moda – como o poder da caneta.

Assim, a liderança, como capacidade de expressar interesses e visões comuns, ou de atrair adesões para idéias e ações, seria plenamente dispensável. Para que adesão à idéia de ações? O governante sente-se  dispensado de provocar a adesão moral dos seus colaboradores – não é preciso dar exemplo, é só ver a realidade do Brasil que todos percebem isso no cotidiano – substituindo-a pela moeda crua do poder de fato.

Cria-se, assim, um padrão intelectual e moral para os liderados: qualquer traço de independência intelectual e política se torna um obstáculo à colaboração.

A escolha fica reduzida a quem não tem idéias próprias nem convicções políticas; ou, se as tem, àqueles que não prezam muito as suas próprias idéias e convicções. Ou, pelo menos, não prezam o suficiente. Cria-se, assim, um processo de auto-seleção: quem adere esquece o que pensa e o que sabe; quem nomeia evita saber o que ainda não sabe e pensar diferentemente do que já pensava. Em suma, para ser seguido, e eventualmente admirado, cerca-se daqueles a quem despreza.  Esta é a realidade.

Montoro, ao contrário, procurou cercar-se de colaboradores com visões e experiências diversas, muitos dos quais conheciam os problemas e tinham experiência executiva até maior do que a do próprio governador. E, em relação a muitos deles, Montoro manifestava uma admiração explícita.

A liderança dele nutria-se na capacidade de aprender com os colaboradores, de ouvir novas idéias, de procurar soluções novas, sem por isso sentir-se diminuído. Ao contrário, sentia-se engrandecido por ser capaz de mobilizar e liderar grandes competências. Ele não concorria com seus subordinados. Isso pode parecer trivial, mas é raro encontrar na vida pública. Pelo contrário, gostava de que os subordinados se afirmassem e brilhassem. Ele não se sentia atingido por isso, mas sentia prestigiado.

A recíproca também é verdadeira: entre seus colaboradores mais próximos que tiveram a oportunidade de alguma convivência com Montoro, eu, por exemplo, nunca encontrei alguém que não manifestasse certo orgulho de ter pertencido ao seu governo.

Um outro aspecto, o sétimo, é o da diversidade versus heterogeneidade. A diversidade de visões, para Montoro, não gerava nem inação nem impasse, porque ele era capaz de mostrar a convergência a longo prazo. Ou, quando tal convergência não era evidente, criar condições para que a possibilidade de convergência se manifestasse.

Assim, ele enfrentou situações políticas de grande incerteza, sem permitir que a ausência de consenso levasse à paralisia decisória. É o caso tão comentado, e que certamente hoje foi muito mencionado, da campanha das diretas. Foi esta campanha, entre suas idéias e iniciativas, a que provocou uma rejeição mais unânime entre seus colaboradores mais próximos. Inclusive eu mesmo.

Quando Montoro propôs mobilizar a população para ir às ruas, manifestar seu apoio à Emenda Constitucional que restabelecia a eleição direta para a Presidência da República e que, se aprovada, abreviaria o fim do regime autoritário, provocou, entre nós, uma unanimidade quase total contra a idéia. Refiro-me especialmente à manifestação de 25 de janeiro de 1984.

Mas ele persistiu, não foi por teimosia, nem por aventureirismo, mas por convicção de que conhecia melhor os sentimentos e expectativas populares, e era capaz de prever com maior precisão a reação da sociedade à lentidão do processo de transição comandado então pelo Planalto.

Ele assim tomou o que foi de fato uma decisão solitária de assumir praticamente sozinho a responsabilidade pela decisão de ir em frente. Mas só o fez quando teve certeza de que obtivera apoio suficiente para organizar uma manifestação maciça, segura e livre.

Na seqüência da campanha das diretas, da qual fora o líder inconteste, Montoro era um candidato natural e legítimo à disputa pela Presidência no Colégio Eleitoral.

Tancredo era apresentado como um candidato mais viável, por suas antigas relações com os setores moderados do regime militar, que posteriormente abriram a dissidência da Frente Liberal e mais tarde formaram o PFL.

Montoro resistiu às sugestões e até pressões de muitos de seus aliados e colaboradores e à sua própria ambição legítima de presidir a Nação e, baseado em sua própria convicção de que o risco de Tancredo perder a eleição indireta era menor do que o seu, por isso tomou a decisão solitária e correta de apoiar a candidatura de Tancredo, que se mostrou vitoriosa.

Passados cinco anos, a sucessão de José Sarney deu lugar a uma pulverização de candidaturas entre as forças políticas que haviam vencido o regime autoritário, do PFL  ao PDT, passando pelo PMDB e o PSDB, pulverização que possibilitou eleger Fernando Collor presidente da República e jogou o País num precipício.

Ninguém seguiu o exemplo de racionalidade e desprendimento de Montoro que permitira, com Tancredo, a eleição do primeiro governo democrático desde o golpe militar de 1964.

É esse desprendimento, essa racionalidade, essa visão política que são o grande legado de Franco Montoro.

Muito obrigado.