Discurso de posse do governador José Serra no Palácio dos Bandeirantes

O discurso aconteceu dia 1º de janeiro de 2007 na sede do governo

seg, 01/01/2007 - 19h54 | Do Portal do Governo

Quiseram as circunstâncias da vida e da política que nos últimos cinco anos eu disputasse três eleições majoritárias de grande alcance: a presidência, a prefeitura de São Paulo e o governo do estado de São Paulo.

Na eleição para governador, vencemos em todas as regiões do estado e em todas as classes sociais, por maioria ampla, no primeiro turno. Quando isto aconteceu, lembrei-me do poeta Carlos Drumond de Andrade: “perder é uma forma de aprender. E ganhar, uma forma de esquecer o que se aprendeu.” Uma reflexão que dispensa provas, mas também pode comportar exceções. Eu procurarei ser uma delas.

Em primeiro lugar, porque já experimentei bastantes subidas e descidas na vida, perfeitas curvas senoidais, para compreender o significado e o acerto da máxima de Kipling, quando nos assegurava que, na vida, ninguém tem o sucesso que acredita nem fracassa tanto quanto imagina. Além disso, porque sei muito bem que eleição confere legitimidade jurídica ao governante, mas a confiança do povo, a única capaz de conferir amplitude e qualidade a essa legitimidade, só se mantém se o eleito for capaz de corresponder às expectativas criadas. Este é um imenso desafio, que começa a ser enfrentado a partir de hoje.

A posse de um novo governante é um verdadeiro rito de passagem, solene. Espera-se de quem vai, um balanço. Espera-se de quem chega, uma projeção, uma sinalização para o futuro.

Para tratar do futuro, neste momento que o país e nosso estado vivem, mais do que repetir os compromissos programáticos e o elenco de ações administrativas que vamos adotar nos próximos quatro anos, reiterados durante e após a campanha, vou falar dos valores e das crenças mais importantes que nos movem a mim e à minha equipe, dos compromissos permanentes com nosso estado e com nosso país. Das grandes preocupações, até das angústias, e de minhas esperanças.

Mencionei a equipe de governo. Aprendi com o governador Franco Montoro: montar o melhor time possível, sem fazer loteamentos político-fisiológicos. Não por ser contra os políticos, pelo contrário, os secretários têm vocação política, mas têm aptidão técnica. E trabalharão voltados para o interesse público e não para as conveniências deste ou aquele partido, grupo ou indivíduo.

Outra coisa que aprendi: nunca concorrer com os subordinados, impedindo que se soltem e adquiram luz própria; nunca estimular ou admitir disputas entre eles, na linha do dividir para reinar. Pelo contrário, a boa vida pública é um jogo de soma positiva. Os que me conhecem sabem que sempre formei equipes competentes e permiti, satisfeito, que cada integrante tivesse suas qualidades e méritos amplamente reconhecidos. Sabem, também, que, apesar da minha (injunsta) fama de centralizador, dou grande liberdade de ação aos que trabalham comigo, dentro de orientações estabelecidas, sempre procurando ampliar os limites conhecidos do possível. Sempre negando que dificuldades signifiquem impossibilidades. Onde talvez eu exagere, mas não estou ainda plenamente convencido de que seja um defeito, é no acompanhamento e na cobrança, notavelmente facilitados pelos e-mails da madrugada…

Aliás, sem ampliar os limites conhecidos do possível jamais teríamos conseguido recuperar a situação financeira da prefeitura de São Paulo em apenas um ano, nem Fernando Henrique Cardoso teria vencido a inflação com o Plano Real. Não preciso me alongar aqui sobre como tem sido nociva, entre nós, a crença no mote tradicional que assegura ser a política a arte do possível. Não, a política deve ser a arte de alargar os horizontes e limites do possível.

Outro mote fatalista e acomodador, até reacionário, é aquele que considera a desonestidade inerente à vida pública, ao garantir que o poder necessariamente corrompe os homens. Não é assim: são (alguns) homens que corrompem o poder; outros, pelo contrário, combatem a corrupção no poder. Estes são os que exercem o poder como servidores do povo, ao invés de se servirem do governo para seus fins pessoais ou partidários.

O que pretendo enfatizar aqui é a necessidade de uma prática transformadora na política brasileira, que vá além, muito além, de discursos. Não basta que se reconheça a necessidade do bem. É preciso praticá-lo. Não basta anunciar futuro glorioso para o povo brasileiro. É preciso construí-lo. Não basta que manifestemos reiteradamente nossos votos de uma vida melhor. É preciso mobilizar instrumentos e técnica para que ela seja realidade.

Em termos de poder público, aquela prática exige, antes de mais nada, que o Estado seja controlado por ele próprio, que o aparato governamental funcione como um todo coerente, do ponto de vista moral, da eficiência e dos objetivos perseguidos, que aja em em função do interesse público. Nada mais distante disso do que a banalização do mal na política brasileira,

das vorazes tentativas neopatrimonialistas de privatização do Estado, que tanto tem prosperado em nosso país.

Em segundo lugar, é preciso que o Estado seja cada vez mais controlado pela sociedade, que esta possa se defender de seus abusos e nele possa influir alterando o rumos das ações públicas, na perspectiva da contínua democratização. E os governos, eu penso, têm de estar empenhados em contar uma parte da história do futuro, antecipando-se ao erro, cercando suas possibilidades, agindo com planejamento, abrindo o caminho e sinalizando a direção a seguir.

Defendo o ativismo governamental. O poderoso Estado Nacional Desenvolvimentista do passado – produtor, regulador de toda a atividade econômica, patrono de todos os benefícios sociais – não tem mais lugar no presente, mas isto não significa que deva ser substituído pelo Estado da pasmaceira, avesso à produção, estagnacionista. Até porque aquele Estado ficou no passado, mas a questão nacional e a questão do desenvolvimento continuam no presente.

Tenhamos claro que o livre mercado globalizado não oferece as respostas para todos os nossos problemas. Basta lembrar que o conceito de cidadania envolve três dimensões: a dos direitos civis – igualdade perante a lei, possibilidade de ir e vir, habeas corpus -, dos direitos políticos – votar e ser votado -, e dos direitos sociais. Mas o cidadão global inexiste: no mundo de hoje o direito de ir e vir entre países está cerceado – só podem ir e vir de um país a outro os capitais e em menor medida as mercadorias, mas, gente, de nenhum forma; o exercício dos direitos políticos está circunscrito às fronteiras nacionais; e se os direitos sociais mal permanecem de pé dentro dessas fronteiras, o que dizer da utopia de fazê-los valer em escala planetária? Ou seja, o objetivo de materializar as condições de uma plena cidadania em cada país exige políticas nacionais, exige ativismo governamental na procura do desenvolvimento e da maior igualdade social.

A política da pasmaceira em relação à nossa economia tem consagrado a mais perversa tendência depois de um século de prosperidade: a semi-estagnação, que já se prolonga por 25 anos. Antes de ontem, ela poderia ser explicada pela superinflação devastadora; ontem, pela terapia anti-inflacionária e conjunturas externas turbulentas; mas e hoje? Hoje o Brasil é praticamente o último da América Latina e dos emergentes, apesar da estabilidade de preços e de que o céu da economia internacional é de brigadeiro de seis estrelas. Os resultados ruins não são colhidos da árvore da vida, da fatalidade, mas da fragilidade da política macroeconômica, hostil à produção e aos investimentos. Não tenham dúvida: a fatalidade, no que diz respeito aos povos, quase sempre conta a história de um erro, quando não de uma covardia.

A história dos povos na democracia mostra que o crescimento amplo e rápido da produção e do emprego não traz somente benefícios materiais. Fortalece, também, as instituições e os valores democráticos, favorece a estabilidade política, estimula a tolerância, amplia as oportunidades. Robustece o caráter moral da sociedade, ao melhorar a atitude das pessoas em relação a si mesmas e às outras. Cria laços sociais mais sólidos, melhora a qualidade da democracia! Estamos perdendo ou deixando de ganhar tudo isso, ao contrário do que aconteceu no Chile, em Portugal, na Espanha, no Sudeste Asiático.

Mas entre a estagnação e a estabilidade, o país parece ter preferido as duas. Em nome desta produz-se aquela; em nome da virtude, acabamos escolhendo o vício. É vital para o Brasil, para São Paulo, para todos os estados e regiões do país, a ruptura desse ciclo, que é também intelectual, de ambições modestas e fracassos bem sucedidos em relação ao crescimento econômico. Um país que não cresce acaba não distribuindo renda mas equalizando a pobreza. A economia da pobreza não pode ter como base a pobreza da economia.

A falta de desenvolvimento pune os mais necessitados; torna-os clientela cativa do assistencialismo. A assistência social é justa e necessária, mas a emancipação verdadeira, sair da pobreza, exige empregos e renda para as famílias, o que só pode acontecer com crescimento econômico. E não há escassez de capital para promover esse crescimento.

Ao contrário, o vertiginoso aumento das remessas de lucros das empresas estrangeiras aqui instaladas e dos investimentos de empresas nacionais no exterior, recursos que se vão a fim de criar empregos lá fora, mostra que não falta poupança ao Brasil para aumentar sua capacidade produtiva e seus empregos – o que falta são oportunidades lucrativas de investimento, espantadas pela pior combinação de juros e câmbio do mundo, em meio a uma carga tributária sufocante.

Serei um militante incansável da Lei de Responsabilidade Fiscal, concebida e aprovada durante o governo do presidente Fernando Henrique, até porque fui o autor do dispositivo constitucional que a possibilitou, porque ela foi feita pelo governo de que eu fiz parte, porque seu espírito presidiu minha atuação na vida pública e porque governo com déficit galopante é governo fraco.

Mas, também, vou defender com todas as forças a Lei (não escrita) da Responsabilidade Social – a Saúde, a Educação, a Cultura, a Segurança.

Por que insisto tanto na questão do crescimento se as políticas macroeconômicas não são da responsabilidade do governo do Estado? Porque a estagnação nos tira postos de trabalho, arrecadação, escolas, saúde, segurança. Porque como governador tenho o dever de vocalizar os anseios de São Paulo. Dessa gente trabalhadora e guerreira, sem preconceitos, que acredita no esforço, na honestidade, no mérito, na seriedade, na franqueza. Paulistas nascidos em todos os estados do Brasil.

Sou filho de um bairro operário onde a solidariedade era um modo de vida, e não apenas uma palavra. Sou filho de uma época de incertezas, nasci quando a Segunda Guerra Mundial estava em curso, na sua primeira metade. Mas me tornei adolescente num tempo em que o Brasil projetava seu futuro, acreditava nele, transformava-o a cada dia em presente de progresso. Uma época em que ser e fazer era mais importante do que ter. Em que produzir nas cidades não era, como hoje, um gesto de quase insanidade econômica, mas um comportamento respeitável. Uma época em que o comércio, a agricultura e a indústria, crescendo e gerando empregos, tinham prestígio, eram mais importantes do que as cirandas financeiras e as especulações dos rentistas que desfrutam as monumentais margens de arbitragem ensejadas pelos juros siderais.

Não sou saudosista porque não sou conformista. Mas não posso deixar de dizer que sou fruto das oportunidades que um Brasil dinâmico dava aos filhos dos mais pobres. Muito diferente do que ocorre hoje. Também sou filho de um Brasil aguerrido, das lutas estudantis e das lutas populares. Contra a vontade tornei-me filho do exílio e de suas dificuldades, embora tenha sido em seu curso que formei minha família, completei minha formação acadêmica, adquiri uma visão do mundo e minha crença teimosa de que é possível fazer muito mais e melhor pelo nosso país.

É possível e necessário. E esta não é uma luta para amanhã, mas para agora. “Se não agora, quando?” indagava o Grande Rabino Hillel, da época de Cristo, sobre a urgência do bem. Se não agora, quando lutar pela restauração dos valores e do significado das palavras na vida pública brasileira?

Se não agora, quando lutar para tirar o Brasil da areia movediça do subdesenvolvimento, que ameaça levar nosso país da condição de país emergente para país imergente?

Desde a minha eleição em primeiro turno, a pergunta que mais me fizeram foi sobre as relações que manteria com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, caso ele fosse reeleito. Como governador de São Paulo procurarei ter com ele as melhores relações institucionais possíveis. Desejo-lhe boa sorte, mais uma vez. A boa sorte do presidente da República significa a boa sorte do nosso povo.

Como é evidente, à oposição cabe… se opor. Não a tudo e a todos, mas ao que, a seu juízo, atente contra o espírito das leis, contra os fundamentos do Estado e contra o interesse público. Isso vale para o Brasil. Isso vale para São Paulo. Esta será nossa melhor contribuição à governabilidade do País.

Não fomos, não somos nem seremos adeptos do quanto pior melhor. Seremos oposição no plano federal justamente porque não somos iguais. Diante de cada projeto de lei ou de emenda constitucional, saberemos separar o que beneficia o país do que o atrasa; os interesses do governo dos interesses do Estado; as conveniências de um partido dos anseios da nação. Em suma: não esperem de mim o adesismo que não se respeita nem a agressão que não oferece respeito.

Temos presente que a governabilidade é tarefa de quem obteve nas urnas o mandato para governar. Não me passa pela cabeça, por exemplo, transferir para a oposição o dever de assegurar a governabilidade do estado que me elegeu. Quem é altivo na derrota não se sujeita. Quem é humilde na vitória não exige sujeição. É assim que se faz uma República.

Por intermédio de seu governador, este estado estende a mão da legalidade e do interesse republicano a quantos queiram colaborar com ele, a quantos queiram colaborar com o Brasil.

Vou governar São Paulo voltado para o Brasil. Não encontrarão eco neste governador os que quiserem acender rivalidades fora de lugar e de hora, que militam contra os interesses do povo brasileiro.

São Paulo acolhe, não discrimina. São Paulo é o maior estado nordestino depois do Nordeste; São Paulo tem o maior número de sulistas depois do Sul; de nortistas depois do Norte; de mineiros depois de Minas; de brasileiros do vasto Brasil central depois do Centro-Oeste. A verdadeira identidade de São Paulo é a fraternidade brasileira. E assim continuará a ser no meu governo.

Quero dizer aos paulistas e a todos os brasileiros que podem contar comigo para que tenhamos um País ordeiro, pautado pela estrita legalidade e pela cooperação entre os entes federativos. Mas reafirmo: nem com a humildade que se confunda com sujeição, nem com a altivez que se misture com arrogância. Esta é a cara de São Paulo.

Creio no ensinamento dos filósofos, de santos e de profetas de todas as religiões de que o único jeito de assegurar a si mesmo a felicidade é aprender a dar felicidade aos outros. Meu ideal de solidariedade, de agregar valores, minha melhor forma de servir e de ser feliz é me dedicar aos outros, diminuir seus sofrimentos e lutar por sua felicidade. Por certo não sou tão bom nisso quanto o foram pessoas com as quais tive o privilégio de conviver: Dom Paulo Evaristo, Franco Montoro, madre Cristina – entre tantas que poderia citar.

Mas, para mim, é a única razão pela qual me dediquei à vida pública e não à vida privada. É a minha vocação. Servir à minha cidade, ao meu estado, ao meu país, ao nosso povo.

Veja a íntegra do discurso de José Serra na Assembléia Legislativa