Especial D.O.: Febem investe no esporte preferido dos internos e ganha atenção dos clubes

Treinadores percorrem as unidades da Febem procurando talentos

qua, 08/09/2004 - 9h30 | Do Portal do Governo

Os adolescentes Fábio, 16 anos, Bruno e Paulo Sérgio, 17, João e Tiago, 18, e Raul, 9, estão realizando seus sonhos. Curiosamente, isso ocorre num período delicado de suas vidas, pois se encontram internados na Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (Febem). Mas foi jogando futebol nas quadras da instituição que conseguiram uma grande oportunidade: habilidosos, foram selecionados para participar dos treinos de times famosos, como o Corinthians e a Portuguesa.

O ambiente das unidades paulista, no que se refere ao futebol, é um reflexo da sociedade brasileira. De acordo com dados da própria instituição, dos 6,8 mil internos no Estado, cerca de 1,3 mil preferem e praticam a modalidade mais popular do País. O restante está distribuído em outras 27 atividades. A criação da Seleção da Febem, há três anos, impulsionou o sonho dos garotos e abriu espaço para o desenvolvimento do potencial de quem leva jeito para a modalidade. Cerca de 540 meninos passam mensalmente pelas mãos experientes dos ex-jogadores Rodrigues (ex-Santos) e Zé Maria (ex-Corinthians), responsáveis pela seleção, que treinam nos campos do Complexo Tatuapé, na capital.

Menino bom de bola

Para selecionar os jovens, Zé Maria e Rodrigues percorrem as unidades da Fundação em todo o Estado e organizam partidas. Nessas ocasiões, promovem palestras de jogadores famosos com o objetivo de transferir uma visão real sobre a vida de um atleta, além de apresentar vídeo para divulgar o trabalho da equipe. “Tem muito menino bom, até acima da média. Esse trabalho acaba sendo uma grande chance para eles, pois assim não perdem a oportunidade de desenvolver suas habilidades e de mostrar a qualidade do seu futebol”, diz Rodrigues. Nesse intuito, a seleção convida equipes de clubes consagrados para jogos amistosos no seu campo.

“Há uns dois meses vieram competir conosco, aqui no Tatuapé, as equipes de base do Palmeiras, do Corinthians e do São Caetano”, conta Rodrigues, numa referência às partidas que garantiram convites para Paulo Sérgio e Tiago participarem de um treino com o juvenil do “Timão”. Um terceiro adolescente, em liberdade assistida, também foi chamado.

“Foi um teste bastante puxado, dois tempos de 50 minutos. Fiz minha parte e o pessoal gostou”, diz o goleiro Tiago, corintiano que foi muito elogiado por Careca, que treinava a equipe sub-17 na época. Com a saída do profissional, os treinos dos meninos foram interrompidos, mas os técnicos da seleção estão em negociação para que sejam retomados. “Estou aguardando, pois quero ser um Fábio Costa”, sonha o jovem.

Enquanto isso, participa dos treinamentos da seleção, no campo do Complexo Tatuapé, duas vezes por semana. De acordo com Rodrigues, entre 30 e 40 adolescentes formam a equipe. “São escolhidos os melhores dos que passam pela nossa peneira, desde que se enquadrem nos requisitos de participação”, informa o técnico. Para integrar o grupo, o interno deve ter bom comportamento na unidade e estar estudando. Depois de selecionado, depende de autorização judicial para sair para os treinos. É transportado por funcionários da unidade e escolta.

No ano passado, toda a equipe do time principal da instituição viajou para o Rio para participar do 1º Torneio Interestadual de Futebol, no Maracanã, que reuniu em torno de 700 meninos da Febem de outros Estados. Voltaram campeões da competição, que terá sua segunda edição neste ano.

Paulo Sérgio está ansioso para jogar no Maracanã. Fã de Ronaldo, o meia diz que foi na Febem que encontrou apoio para lutar pela carreira de jogador. Internado numa unidade do Tatuapé desde o mês passado, ele veio de Jundiaí, onde atuava no Grêmio CP, um clube local. “Jogar futebol aqui dentro faz a diferença na minha vida”, avalia.

Estrutura de clube de futebol

No Complexo Tatuapé, o maior do Estado e com mais unidades de atendimento, a Seleção da Febem conta com a estrutura de um clube de futebol. São dois campos e sala de musculação com dois técnicos e dois treinadores. No mesmo local, funciona uma escolinha de futebol, dirigida apenas aos internos das 18 unidades do Complexo.

As aulas são revezadas com os treinos da seleção (três dias da semana) e têm o acompanhamento dos mesmos profissionais, com o ex-craque corintiano, Zé Maria, à frente. O currículo do professor enche os alunos de orgulho e motivação. Foi reserva de Carlos Alberto Torres na Copa do Mundo do México, em 1970, e ídolo da torcida corintiana.

Segundo o diretor de esportes da instituição, Paulo Teixeira, o investimento na modalidade é uma estratégia de ressocialização dos jovens. “O trabalho é prazeroso e dá resultados. Como ser jogador de futebol é o sonho da maioria, a gente aproveita o gancho, mas sem iludir os meninos”, frisa. Paulo ressalta que, no caso dos internos selecionados para participar de treino, há grande cuidado no acompanhamento psicológico para que eles não fiquem iludidos com o ambiente que passam a freqüentar.

Casa do Atleta

Outra estrutura especialmente criada para os internos que se destacam como esportistas, mas de todas as modalidades, é a Unidade de Internação 10 (UI-10), também no Complexo Tatuapé, conhecida como Casa do Atleta. Para lá são encaminhados os jovens que, após a avaliação, se destacam pela habilidade em algum esporte, desde que não sejam reincidentes e tenham bom comportamento.

Inaugurada em agosto de 2002, tem 80 vagas distribuídas em dez modalidades: futebol, futebol de salão, handebol, voleibol, basquete, tênis de mesa, xadrez, skate, triatlo e atletismo. Segundo o diretor da Casa do Atleta, o professor de educação física Sérgio da Silva Ferreira, o trabalho é fundamentado no objetivo de preparar o interno para o seu retorno em sociedade. “Nossa meta é criar uma casa específica para o momento da desinternação, para que os meninos não percam a rotina esportiva de uma hora para outra”, revela o professor.

Na opinião do supervisor esportivo do Complexo Tatuapé, Sílvio Tavares Gonçales, a atividade esportiva traz benefícios imediatos aos internos, tanto fisiológicos como psicológicos, e é uma das principais ferramentas para reintegrar os meninos. “Com ela trabalhamos a dificuldade de entendimento de regras, de hierarquia e de convivência”, enumera. “Olha só o comportamento desses meninos, é ótimo”, diz , referindo-se aos jogadores da seleção que estão treinando.

O diretor do Complexo Tatuapé, Nilson Gomes de Sena, confirma a tese de Sílvio. Segundo ele, o esporte é um marco no local. “Isso aqui era um barril de pólvora. Desde que reforçamos a programação esportiva na linha pedagógica, melhorou muito. Há um ano e seis meses que não temos problemas, e de janeiro até agora já pudemos realizar 1.091 desinternações”, comemora. O diretor considera o futebol como um dos principais meios para a criação de vínculos no Complexo. “É uma unanimidade”, conclui.

Futebol, um Apito de Esperança

No Complexo Franco da Rocha, outra iniciativa relacionada ao futebol tem gerado bons resultados para os internos. É o projeto Futebol, um Apito de Esperança, lançado em fevereiro pelo árbitro e funcionário da Febem Cléber de Oliveira, que já rendeu trabalho de bandeirinha em jogos amadores a meninos em liberdade assistida.

O projeto, desenvolvido em parceria com a empresa de arbitragem Promovesp (Promoções Eventos e Assessoria Esportiva), habilita jovens da instituição como árbitros assistentes (bandeirinhas) e tem o objetivo de passar noções de responsabilidade e a importância das regras. “A figura do juiz de futebol está ligada à da autoridade com responsabilidade e ao esporte preferido da garotada”, acredita Cléber.

A iniciativa envolve a realização de um curso, no qual os adolescentes têm aulas teóricas e práticas de arbitragem e procedimentos administrativos, dadas pelos profissionais da Promovesp. Os cursos têm duração de seis meses, com aulas de 90 minutos duas vezes por semana. Habilita os jovens a seguir carreira na área, pois rende diploma reconhecido pelo Sindicato dos Árbitros Profissionais do Estado de São Paulo e prevê o aproveitamento de alguns na própria Promovesp.

A grande chance

Para Fábio e Bruno, internos do Complexo Franco da Rocha, o jogo amistoso com o juvenil da Portuguesa de Desportos, realizado como teste para os primeiros 22 árbitros formados pelo projeto Futebol, Um Apito de Esperança, foi muito mais do que um bom momento no dia-a-dia. Observados pelo técnico do time convidado, Aguinaldo de Souza, o Guina, foram chamados para participar de treinos de avaliação no time comandado por ele.
“Os meninos são bons, prometem”, avalia. “Tenho de trabalhar com critério, pois nossa função é apoiar os garotos”.

Segundo o técnico, que tem como principal objetivo a revelação de talentos, os garotos têm mostrado entrosamento e garra. Guina afirma que, se continuarem assim, poderão até disputar o Campeonato Paulista Juvenil do ano que vem.

“Quero aproveitar a oportunidade da melhor maneira possível”, planeja o meia Bruno, interno em Franco da Rocha há dez meses. Em sua cidade, Botucatu, havia sido campeão na Liga Botucatuense, jogando pelo Sesi. “Mas agora estou tendo a chance da minha vida”, afirma.

Para ele, além disso, os treinos que realiza duas vezes por semana no CT da Portuguesa têm outra vantagem: “Ajudam muito mentalmente”, diz, referindo-se ao fato de ficar internado.

O atacante Fábio concorda. Diz que as partidas de futebol mudaram a sua cabeça e as saídas para os treinos são um alívio. “Eu jogava futebol desde pequeno, mas foi nesses dez meses de Febem que descobri que o esporte é a minha vida”, revela. “Com certeza, vou me tornar um profissional”.

A bola como parte de todos os sonhos

É apenas mais um dia de treino no Centro de Treinamento do Corinthians, em Itaquera, mas para João é muito mais do que isso. Internado na Febem Vila Maria desde março, pela primeira vez está saindo de lá e, principalmente, para se apresentar para um treino no juvenil do Corinthians, o seu time.

“Você não tá nem acreditando que está aqui, né João?”, diz para ele o coordenador de apoio técnico da unidade, José Augusto Barbosa da Silva, o Aritana, ex-jogador de futebol. Com faro de quem já jogou profissionalmente, Aritana percebeu o talento de João e o recomendou aos seus conhecidos no clube. “Estou realizando um sonho”, diz o zagueiro, com o olhar perdido no gramado, ansioso para ir imediatamente para o campo. O menino, que veio de Franca e já tem uma filha, gosta de ver Robinho, do Santos, jogar.

Seu amigo, Raul, que já está treinando há dois meses no clube, parece radiante com a presença do companheiro de unidade. Também foi recomendado por Aritana e é muito agradecido por isso. “Estou vivendo a melhor fase da minha vida”, empolga-se o meio-campo, que antes de vir para a Febem jogava no juvenil da Ferroviária, em Araraquara. Para Raul, o fato de ganhar uma chance no time do coração apaga a tristeza de estar privado da liberdade.

O técnico da equipe, Adaílton Ladeira, diz que Raul se deu muito bem no grupo e tem se mostrado bastante aplicado. “Espero que ele e o menino que está chegando se integrem definitivamente ao grupo, por meio do futebol, e que encontrem um bom caminho para suas vidas”, torce. Mas avisa: “Eles vão ter que se esforçar muito, pois a concorrência é grande.”

  • Fábio, Bruno, Paulo Sérgio, João, Tiago e Raul são nomes fictícios

    Simone de Marco
    Da Agência Imprensa Oficial