Visões muito além do Modernismo

Gazeta Mercantil - Sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

sex, 19/12/2008 - 16h21 | Do Portal do Governo

Gazeta Mercantil

 “Não se deve nunca sofrer pelo que fizemos nem pelo que deixamos de fazer: o passado é incondicionalmente bom, mesmo com seus sofrimentos, mesmo com suas misérias, porque pode resumir-se (sic) nessa coisa preciosa que se chama experiência”, escreve Tarsila do Amaral, em crônica publicada no Diário de São Paulo de 6 de setembro de 1942. A pintora comentava o artigo “O Movimento Modernista”, escrito pelo velho amigo Mário de Andrade para uma conferência realizada na Casa do Estudante, no Rio, em comemoração aos vinte anos da Semana de Arte Moderna.

Neste texto – que ao longo das décadas acabou se tornando uma espécie de “testamento-síntese” do que foi a essência do Modernismo brasileiro -, Mário critica em muitos trechos o movimento que tanto ajudou a articular, devido, segundo ele, ao fato de o Modernismo não ter dado mais atenção às questões sociais brasileiras.

Ao “responder” ao amigo pelo jornal, Tarsila, com a elegância e sutileza que sempre lhes foram peculiares, revelava um de seus traços mais fortes, que lhe acompanhou por toda a vida: a capacidade de se adaptar a cada nova situação e usar sua arte para expressar tanto as próprias transformações quanto as do mundo à sua volta.

Apesar disto, Tarsila entrou para a história da arte brasileira devido a apenas algumas obras, que acabaram por se tornar verdadeiros emblemas para a iconografia brasileira, não apenas no País, como no exterior. O recém-lançado catálogo raisonné da artista, contudo, tem como principal mérito levar ao público uma visão mais ampla e múltipla – e por que não dizer arejada – de sua vasta produção, que cobriu um período de mais de sete décadas, desde que começou a pintar, aos 16 anos, até sua morte em 1973.

Produção essa que se inicia com forte herança acadêmica, em 1902, quando estudava em um colégio interno em Barcelona, e que desemboca nas obras do final de sua vida, marcadas pelas cores da fase Pau Brasil e por um universo fortemente apoiado em elementos de manifestações populares e festas religiosas. Entretanto, seria um erro tentar siste-matizar os trabalhos de Tarsila por fases, principalmente após o final da década de 1920, dada a pluralidade de assuntos e temas que de alguma maneira despertaram a atenção dela.

Resultado de uma pesquisa de mais de 3 anos desenvolvida pela Base 7 Projetos Culturais em parceria com a Pinacoteca do Estado e outros mais de 100 colaboradores, o raisonné – orçado em R$ 2,8 milhões e realizado com o patrocínio da Petrobras – que chega agora às prateleiras atesta justamente isto. Reunindo mais de 2.100 trabalhos de Tarsila divididos em três volumes – “Pinturas”, “Desenhos e Ilustrações” e “Esculturas e Gravuras” -, o catálogo exibe as várias faces da artista, inclusive as menos conhecidas, tais como seu trabalho como ilustradora de livros e periódicos.

No catálogo, os leitores encontrarão desde os dados bibliográficos da pintora, até sua lista de exposições individuais e coletivas, não apenas durante sua vida, mas também as realizadas postumamente como, por exemplo, “Tarsila Viajante”, realizada no início deste ano na Pinacoteca.

Esta exposição, aliás, que celebrou os 80 anos do “Abaporu” – dado pela pintora a seu marido Oswald de Andrade e que o inspirou a escrever o “Manifesto Antropofágico” -, foi fruto das pesquisas para a realização do catálogo, tendo como curadora Regina Teixeira de Barros e consultora a crítica e professora da USP Aracy Amaral, sobrinha da pintora e pioneira na catalogação de seu trabalho, que resultou no livro “Tarsila: Sua Obra e seu Tempo”, publicado pela primeira vez em 1975.

Carregando o grande mérito de reunir lado a lado, na mesma sala, “A Negra”, de 1923, “Antropofagia, de 1928 – hoje em exposição permanente em Buenos Aires, no Malba, museu que expõe o acervo do colecionador Eduardo Constantini – e “Antropofagia”, de 1929, a exposição da Pinacoteca, mesmo com um trabalho curatorial impecável, não conseguiu fugir dos medalhões consagrados de Tarsila em sua concepção.

Vanguarda, mas não sempre

É, portanto, um regalo aos amantes da artista ter em mãos esse meticuloso raisonné que dá a verdadeira dimensão de sua obra, exibindo não apenas seus momentos mais criativos e brilhantes, mas também sua produção mais simples que, em alguns casos, pode lembrar as boas pinturas naïfs, principalmente em trabalhos executados após a década de 1940.

“Ninguém consegue ser vanguarda o tempo todo”, afirmou o diretor teatral Sérgio Ferrara ao ser indagado sobre os altos e baixos da produção da pintora, por ocasião do lançamento do espetáculo “Tarsila”, em 2003. Nenhuma frase poderia ser mais adequada para que se entenda o percurso da artista, em que biografia e arte se mesclam de maneira indissolúvel todo o tempo.

Filha de uma rica família de fazendeiros de café em Capivari (SP), Tarsila tem uma história de vida que poderia render não apenas uma peça de teatro, como já fez Ferrara, mas no mínimo uma minissérie televisiva de muitos capítulos. A menina que nasceu rica, freqüentou os melhores colégios e estudou arte na efervescente Paris do início dos anos 1920, ficou pobre em 1929 com o Crash da Bolsa de Nova York.

Encantada com os modernistas paulistanos, Tarsila logo passou a integrar o grupo que durante aqueles inquietos anos que cercaram a Semana de Arte Moder-na promoveu uma “revolução das formas” na arte brasileira – como frisa a pesquisadora Annateresa Fabris -, ajudando a romper com os rígidos padrões da arte acadêmica que passou a dominar gradativamente a produção nacional da Missão Artística Francesa de 1816 em diante.

Na história da arte e das exposições recentes no País, é Paulo Herkenhoff, no entanto, que terá a ousadia de “questionar” Tarsila, tirando-a do lugar em que ela foi entronizada por críticos e curadores brasileiros e buscando um exato – e não menos honroso lugar – para seu legado artístico.

Curador da 24 Bienal de São Paulo em 1998 – exatamente a que tratou da Antropofagia deflagrada por Tarsila exatamente 70 anos antes – Herkenhoff tem um insight genial ao analisar a tela “A Baratinha”, de 1935, para o catálogo da exposição “Arte Brasileira na Coleção Fadel”, ocorrida entre 2002 e 2003 nos CCBBs do Rio, São Paulo e Brasília.

“‘A Baratinha’, da fase social, é o auto-retrato econômico e autocomplacente de Tarsila”, escreve o pesquisador. “Depois que a família Amaral perdeu sua fazenda nos anos 1930, Tarsila já não se retrata com a mesma freqüência. Já não é a máquina que operou em Paris nos anos 1920, mas uma imagem de um sujeito deprimido, sem ter o que fazer, descalço, sentado numa baratinha, carro moderno, demonstrando sinais exteriores de pobreza numa paisagem desértica – tudo lembra o impasse existencial de Tarsila, sem arte, sem brilho e sem fazenda.”

A fase social da “caipirinha de Poiret”, como a chamava seu então marido Oswald de Andrade – fazendo menção a um dos mais importantes estilistas franceses da época, que costumava costurar criações exclusivas para Tarsila nos anos 1920 – não durou mais que quatro ou cinco anos. Talvez o tempo em que a artista foi casada com Osório César, médico e militante do Partido Comunista. Isso, porém, não impediu que telas hoje clássicas fossem pintadas no período, como “Operários”, de 1933, retrato da multiplicidade de etnias que naquele momento impulsionavam a indústria da Paulicéia Desvairada.

Um novo tempo urgia e Tarsila percebeu aquilo que poucos conseguem perceber quando estão imersos em dificuldades e mudanças dolorosas: o passado era de fato o passado. A pintora decide então que ele é “incodicionalmente bom”, como escreve no artigo a seu amigo Mário de Andrade.

Entre 1936 e 1956, tem que vender sua última fazenda e passa a escrever como cronista no Diário de São Paulo para sobreviver. Perde a única filha e a neta, mas não a gana de viver. Sua pintura torna-se então voltada à cultura popular, onde as cores da fase Pau Brasil se tornam freqüentes. Reconhecida cada vez mais pelo mercado como uma expoente do Modernismo, circula pelo mundo da arte, onde é respeitada e estimada por todos.

O tempo implacável que corroeu-lhe quase tudo, foi no final o senhor da razão: hoje Tarsila figura entre as mais importantes artistas brasileiras do século XX. Os mais de 2.100 trabalhos reunidos agora no catálogo raisonné são testemunhas que o talento dela foi maior que qualquer contingência da História.