USP e Unicamp: cientistas debatem classificação de nomes de seres vivos

Pesquisadores defendem manutenção das regras ligadas à taxonomia, ciência responsável por nomear a biodiversidade

seg, 30/07/2018 - 19h08 | Do Portal do Governo

Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP) participam de debates a respeito da classificação de nomes de animais, plantas e microrganismos. As discussões sobre as fronteiras da unidade de análise “espécie” são recorrentes e apoiadas em evidências científicas.

Vale destacar que a ciência responsável por nomear e classificar a biodiversidade recebe o nome de “taxonomia”. Por meio desse conhecimento, batizar espécies, reorganizar gêneros e descontinuar nomes antigos são algumas das consequências dos progressos da ciência que nomeia os seres vivos.

A situação repercute nas políticas de conservação da biodiversidade em todo mundo. Os australianos Stephen T. Garnett e Les Christidis foram os porta-vozes do grupo que vê o que eles chamam de “uma grande anarquia” no processo de classificação e retrataram esse ponto de vista na revista Nature de maio de 2017.

Supervisão

Na visão dos autores, espécies são frequentemente criadas ou descartadas arbitrariamente. Segundo ambos, o rearranjo varia de acordo com o alinhamento teórico do taxonomista. Eles acrescentam que não há uma supervisão global das decisões taxonômicas, que possibilita que os pesquisadores possam “dividir ou agrupar” espécies sem considerar as consequências, por exemplo, para a conservação da biodiversidade.

Entre as consequências, os australianos mencionam o fato de um grupo de espécies parecer mais ameaçado do que outro, e assim receber uma fatia maior de financiamento para conservação.

“Essas alterações afetam regulações, mudam legislações, especialmente de espécies ameaçadas, simplesmente em decorrência de uma decisão baseada em filosofia. Cada taxonomista pode propor uma nova estrutura de nomenclatura. Eles devem ter responsabilidade sobre o que propõem e saber que suas decisões têm implicações” argumentou Les Christidis, em declaração ao podcast da revista Nature, em junho do ano passado.

Segundo especialistas, uma revisão taxonômica poderia afetar programas inteiros de conservação, empreendimentos turísticos e oportunidades de emprego. “As listas de espécies são uma ferramenta importante para a tomada de decisão”, avalia Natália Ivanauskas, pesquisadora científica do Instituto Florestal, órgão responsável pela gestão da maior parte das unidades de conservação do Estado.

Conservação

A partir dessas listas, bem como a frequência das espécies, são determinados o grau de degradação ou de conservação de uma área e quais regiões são prioritárias para conservação ou com alto valor nos processos de licenciamento.

A divisão ou fusão altera as frequências de espécies de um determinado local, pois leva ao aumento ou redução da riqueza de espécies, após uma revisão taxonômica. Nem sempre a revisão do status de ameaça acompanha o rearranjo das espécies no mesmo ritmo. “Há um espaço temporal entre a publicação científica e a revisão das listas de ameaçadas, o que de fato pode ser prejudicial para a conservação”, analisa a pesquisadora. “Mas considero que é uma questão de avanço de conhecimento científico que deve ser respeitada”, completa.

Como solução, os autores do editorial da revista científica propõem que a União Internacional de Ciências Biológicas (IUBS), o ramo de biologia do International Science Council, deveria iniciar uma comissão taxonômica, que estabeleceria regras rígidas para determinar novas espécies. O processo resultaria na primeira lista global padronizada de espécies.

Resposta

As opiniões mobilizaram a comunidade de taxomistas de todo o mundo, que respondeu em forma de artigo publicado na PLoS Biology em março de 2018. O artigo teve 184 autores de 37 países, que escreveram contestando a dupla australiana. Do Brasil, participaram cientistas de 12 instituições de ensino e pesquisa, entre as quais a Unicamp.

O artigo é liderado por Scott A. Thomson, taxonomista de tartarugas e pesquisador visitante do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP). O texto reproduz o ponto de vista de um grupo que não se vê como meros fornecedores de nomes de espécies para outras áreas do conhecimento e, sim, como uma ciência viva.

Na opinião dos 184 autores, colocar a governança sobre a ciência da taxonomia obscurece a distinção entre taxonomia e nomenclatura. Além disso, a definição do que seja uma espécie está se alterando.

“Essa mudança não é compreendida por todos. E aí gera a insatisfação daqueles que têm uma visão mais utilitarista do que é espécie e que se veem prejudicados com estas mudanças. Não entendem que por ser uma ciência baseada em pressupostos hipotéticos dedutivos, ela pode mudar ao longo do tempo”, afirma André Garraffoni, especialista em gastrotrícos (organismos minúsculos que vivem entre os grãos de areia das praias), coautor do artigo de resposta e professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Análises

Atualmente, a taxonomia é produto do casamento das tradicionais análises morfológicas e das modernas técnicas moleculares. “Estamos no meio de uma revolução científica na taxonomia” posiciona o pesquisador. Nos últimos anos, aumentou expressivamente o número de espécies descritas utilizando evidências morfológicas e moleculares.

Essa revolução varia de grupo para grupo. Nas algas isso já vem ocorrendo há 30 anos. No grupo dos delicados gastrotrícos, a revolução ocorre com maior intensidade de cinco anos para cá.

“O uso dessas ferramentas tem se mostrado fundamental para o entendimento da diversidade de espécies, sua distribuição geográfica e afinidades filogenéticas”, explica Mariana Cabral de Oliveira, professora da USP, especialista em algas.

O Plano de Ação Nacional para Conservação dos Lepidópteros Ameaçados de Extinção, documento de 2011, já sentiu alguns dos impactos das alterações taxonômicas das borboletas. A revisão da nomenclatura com abordagem molecular e morfológica apontou que duas ou três espécies ameaçadas mudaram de gênero.

“A espécie continua ameaçada, só mudou de nome”, afirma André Freitas, especialista em borboletas, coautor do artigo da PLoS e professor do IB-Unicamp.

Classificação

Vale lembrar que a taxonomia segue o sistema de classificação iniciado pelo biólogo sueco Carl Linnaeus em 1735. Os nomes das espécies são em latim e compostos de duas partes. O primeiro nome corresponde ao gênero e o segundo, ao nome (ou epíteto) específico.

Quando um cientista quer nomear uma forma de vida recém-descoberta, o primeiro passo é reunir de duas a três linhas de evidência (DNA e morfologia, por exemplo) que sugerem que se está lidando com algo desconhecido para a ciência. Então, é necessário selecionar um exemplar – ou parte dele – para ser designado como holótipo, que é o indivíduo de referência da nova espécie e que servirá como um identificador para futuros pesquisadores.

Em seguida, o pesquisador escreverá seu artigo, no qual descreve a descoberta, nomeando a nova espécie de acordo com as regras de nomenclatura taxonômica. Finalmente, o pesquisador envia seu trabalho para um periódico científico para publicação. Se ele for o primeiro a publicar, o nome escolhido tem prioridade sobre outros.

Entretanto, a última etapa, de publicação, não é tarefa fácil. Em teoria, as evidências que se apresentam devem seguir o alto padrão de referência científica e ética da revisão por pares. A publicação pode levar meses ou até anos.

As regras para nomear um novo táxon animal são regidas pela Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN), que produz o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica (mesma sigla, ICZN). No caso da Botânica não há um órgão correspondente. O Código Internacional de Nomenclatura para Algas, Fungos e Plantas é debatido amplamente e atualizado a cada seis anos, nos congressos internacionais de botânica.