Pesquisadores da Unesp investigam hábitos alimentares das formigas

Relação de mutualismo entre insetos do continente americano e fungos é analisada por cientistas de sete instituições

qua, 22/08/2018 - 11h37 | Do Portal do Governo

Em parceria com cientistas norte-americanos, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) analisam a elaboração de parcerias e os hábitos ligados à alimentação de formigas. Vale destacar que, há mais de 50 milhões de anos, as formigas da tribo (classificação taxonômica entre a definição de família e a de gênero) Attini desenvolveram a fungicultura.

Elas passaram a usar folhas, flores, fragmentos de galhos e sementes como substrato para o cultivo de fungos, base da alimentação. Dos 14 gêneros de formigas que integram essa tribo, as mais bem-sucedidas do ponto de vista ecológico são as cortadeiras, pertencentes aos gêneros Atta (saúvas) e Acromyrmex (quenquéns).

De acordo com especialistas, as cortadeiras dominam todo o continente americano e fazem ninhos gigantescos, com milhões de indivíduos, alguns tão extensos que chegam a ser visíveis em fotos tiradas no espaço, por satélites. Por muito tempo, os ecólogos pensaram que o sucesso das saúvas e quenquéns se devia à maneira particular de cultivar alimento.

Substrato

As cortadeiras utilizam folhas verdes e frescas, recém-cortadas, como substrato para os jardins de fungos, enquanto as demais formigas da tribo Attini lançam mão de folhas mortas e material orgânico em decomposição para produzir a comida. Como há mais folhas vivas do que mortas na natureza, as cortadeiras teriam maior potencial de crescimento populacional do que as formigas que dependem de material em putrefação para produzir seu repasto.

A ideia dominante era a de que, nesse substrato verde, onde há mais nutrientes do que nas folhas mortas, as cortadeiras cultivavam apenas fungos da espécie Leucocoprinus gongylophorus. Segundo a teoria mais aceita, as cortadeiras teriam surgido ao longo dos últimos 19 milhões de anos e passado por um processo de coevolução ao lado desse fungo, gerando uma relação de fidelidade.

Um trabalho realizado por biólogos brasileiros e norte-americanos, publicado na revista Molecular Ecology, contraria essa concepção. “A ideia de que cada grupo de formiga cultivava apenas uma espécie de fungo era algo consolidado. Mas nosso estudo mostra que as formigas estão abertas a novas parcerias, e essas trocas não alteram o sucesso ecológico das espécies”, explica o farmacêutico-bioquímico Mauricio Bacci Júnior, do Centro de Estudos de Insetos Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, e um dos líderes da pesquisa, que envolveu sete universidades.

O estudo levou em conta dados ecológicos e genéticos de mais de 40 espécies de formigas cortadeiras encontradas entre o norte e o sul do continente americano. O cientista avalia que o fungo que se julgava ser específico dos ninhos de saúvas e quenquéns foi encontrado em colônias de formigas do gênero Trachymyrmex, também da tribo Attini, mas que têm um comportamento intermediário entre as cortadeiras e as não cortadeiras: elas utilizam tanto folhas verdes quanto matéria orgânica em decomposição como substrato de cultivo.

Conclusões

O farmacêutico-bioquímico também ressalta que o fungo que recebia o mesmo nome das formigas Trachymyrmex talvez precise ser renomeado por ter sido identificado agora em ninhos de formigas Atta laevigata, cortadeira conhecida popularmente como saúva cabeça-de-vidro ou saúva-de-vidro.

“Chegamos à conclusão de que o sucesso ecológico das formigas e, consequentemente, seu impacto destrutivo na agricultura não pode ser atribuído à colheita de um superfungo específico”, enfatiza o biólogo Ulrich Mueller, da Universidade do Texas, coautor do trabalho.

“Existe um ‘comércio’ subterrâneo de fungos. As formigas fazem como os humanos com os produtos agrícolas: trocam espécies de fungos entre si e selecionam as mais nutritivas”, compara Mauricio Bacci Júnior. “Em uma mesma região, a poucos quilômetros de distância, é possível encontrar a mesma espécie de formiga com espécies distintas de fungos”, acrescenta.

Mutualismo

A relação formiga-fungo é mutualista, ou seja, ambos se beneficiam, mas ainda são pouco conhecidas as complexas interações existentes no ninho. O pesquisador da Unesp conta que a cultura desses fungos cresce lentamente em laboratório.

O artigo publicado na Molecular Ecology cita pesquisas anteriores com resultados semelhantes. A mais surpreendente foi realizada em 2015, com a colaboração de Bacci e Mueller. “Encontramos na Amazônia a formiga Apterostigma megacephala, uma espécie rara que geralmente cultiva um dos fungos mais primitivos de vida livre que se conhece, produzindo e se alimentando do fungo da cortadeira, Leucocoprinus gongylophorus”, relata o biólogo Heraldo de Vasconcelos, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), um dos autores da pesquisa. “A contribuição mais interessante do trabalho foi apresentar uma grande quantidade de evidências de que o processo coevolutivo entre cortadeiras e esse fungo foi mais difuso do que se imaginava”, declara.

Aplicações

Não é apenas a habilidade de cultivar espécies variadas de fungos, porém, que define o sucesso ecológico dessas formigas. A capacidade de manter colônias tão numerosas em áreas com clima, vegetação e solo diversos depende ainda de dois outros fatores: hábitos de higiene meticulosos e cooperação com bactérias que eliminam fungos nocivos ao formigueiro. “Essas formigas são muito vigilantes e fazem a assepsia de cada folha que trazem para o ninho, retirando os esporos de fungos que competem com os cultivados por elas”, conta o entomologista Odair Correa Bueno, professor da Unesp em Rio Claro.

“Se conseguirmos entender a ‘tecnologia agrícola’ dessas formigas será possível produzir em laboratório substâncias químicas de interesse comercial”, diz o farmacêutico-bioquímico Mauricio Bacci Júnior. De acordo com o pesquisador, seus fungos conseguem converter biomassa vegetal em substâncias com alto valor de mercado e que são utilizados principalmente como adoçantes artificiais.

Para confirmar essas possibilidades, mais estudos devem ser feitos. Segundo os cientistas, as populações de cortadeiras da América do Sul ainda precisam ser amostradas na mesma densidade que as da América Central e da América do Norte, para gerar um quadro completo da biogeografia de associações de fungos e formigas no continente.