Clínica pública oferece tratamento para dependentes químicos

Pela primeira vez no Brasil, serviço público promove internação com equipe multidisciplinar, que inclui assistência médica e palestras

qua, 14/10/2009 - 12h22 | Do Portal do Governo

De cabelos alinhados e unhas bem-feitas, Fernanda(*), 29 anos, fala animada e com desenvoltura sobre seus planos para o futuro: cursar Administração, morar com a mãe, praticar natação, pintar quadros e atuar como voluntária numa escola pública. Suas metas também incluem largar as drogas, definitivamente, frequentar o grupo de Narcóticos Anônimos (NA) e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Após um ano de adaptação social, pretende procurar emprego.

Fernanda consumiu cocaína todos os dias durante 14 anos e crack por seis meses. “Estou limpa há 36 dias”, comemorou a jovem no final de setembro. Internada desde agosto na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) de São Bernardo do Campo, Grande São Paulo, ela ocupa um dos 28 leitos de internação da primeira clínica pública do Brasil, criada com filosofia diferenciada para atender especialmente aos dependentes químicos.

Resultado de parceria da Secretaria da Saúde com o Grupo Bandeirantes e a Uniad, vinculada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a clínica começou a funcionar no final de março e já recebeu mais de uma centena de pacientes diagnosticados com grave intoxicação. A unidade da Unifesp já existia, mas ganhou nova estrutura de atendimento após o convênio com o Estado.

A psiquiatra Alessandra Diehl, diretora clínica da unidade, informa que a reclusão só é recomendada quando o dependente químico não consegue manter a abstinência pelo tratamento ambulatorial ou internação domiciliar (em casa, com o apoio da família). Quando essas alternativas são ineficazes, o médico aconselha a internação, desde que seja a vontade do paciente. “Aqui não é pronto-socorro. Recebemos pessoas com mais de 18 anos e só por indicação médica”, informa a diretora Alessandra.

O tratamento gratuito é oferecido a partir do encaminhamento de pronto-socorro, Unidade Básica de Saúde (UBS), serviço ambulatorial, enfermaria psiquiátrica de hospital geral ou Centro de Atenção Psicossocial (Caps), unidade de saúde da rede municipal. O paciente recebe assistência multidisciplinar com terapeuta ocupacional, nutricionista, educador físico, psiquiatra, psicólogo, conselheiro em dependência química, enfermeiro, assistente social e outros. O custo diário da assistência chega a R$ 100 por paciente.

Desde o primeiro dia de internação, Fernanda segue intensa rotina organizada por equipe multiprofissional. Ela e os demais internos despertam às seis da manhã e vão para a cama por volta de 23 horas. A programação diária inclui atividades em grupo de educação física (nas áreas verde e interna), enfermagem, terapia ocupacional, assistência social, palestra de conselheiros dos Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA).

Para as mulheres e para homens

Há grupo feminino de discussões. A psiquiatra Alessandra diz que elas sentem vergonha, são marginalizadas pela sociedade e demoram mais que os homens a procurar o tratamento: “A interna tem menos apoio familiar que o homem. Nem sempre o companheiro vem visitá-la. Geralmente é separada ou a relação está desgastada”. No futuro, a diretora pretende reformar outros 30 leitos da clínica e ampliar o atendimento às mulheres.

A médica observa que entre os homens a situação é oposta: a esposa frequenta a clínica regularmente. Para o sexo masculino, os profissionais de saúde abordam trabalho, família, perdas: “Eles lamentam terem ingerido álcool a vida toda porque atingiram certa idade e não construíram nada, se tornaram impotentes sexuais e ainda dependem da família. O apoio familiar é fundamental para a continuidade do tratamento após a alta”. Por isso, uma vez por semana os parentes participam de discussão em grupo. “Certa vez, os pais fizeram festa para comemorar a alta do paciente. Por um triz a pessoa não voltou a beber. Mostramos que os mais próximos também precisam responsabilizar-se pela abstinência”, alerta a psiquiatra.

A participação dos parentes é expressiva, afirma a psicóloga Juliana Marinho. Informa que só há ausência em casos de desestruturação ou dificuldade financeira. Para reforçar a importância do apoio desses membros, a diretora da clínica planeja firmar parceria com instituição especializada em orientação de familiares de dependentes. “Pela primeira vez o serviço público oferece internação com equipe multidisciplinar e os 12 passos baseados no AA e NA para auxiliar o tratamento de dependentes químicos”, diz a psicóloga. Conselheiros terapêuticos das duas instituições são contratados para bate-papo diário com os internos, que auxilia a recuperação dos dependentes.

Kauã(*) é um dos conselheiros do NA. Está longe da bebida e da droga há cerca de nove anos: “Passo a experiência de como é gostoso viver limpo”. Kauã ensina que o paciente tem doença incurável, independentemente do uso da droga. Por isso, precisa estar sempre de bem com a vida para evitar recaída.

No decorrer do tratamento, o paciente ganha fichas de cores branca e laranja, que indicam ingresso no NA e afastamento das drogas por 30 dias. “Recuperei a autoestima e a dignidade. Aqui, o atendimento nem se compara ao de uma clínica particular, de R$ 3 mil por mês, onde fiquei internada e tive recaída”, frisa a jovem paciente. “Em breve, após a alta, o desafio será lá fora. Alta clínica não quer dizer sucesso no tratamento”, ressalta a psiquiatra.

A pintura em tela na terapia ocupacional é uma das atividades de que Karla(*) mais gosta. “Fugi das drogas, mas me tornei dependente de álcool há tantos anos que nem me lembro quando comecei. Só sei que de dois anos para cá piorei. Era estoquista de álcool”, recorda. Ela está internada há mais de um mês e diz que aprendeu a valorizar a vida e lamenta ter ignorado o papel de mãe, pois as crises frequentes a distanciaram do filho de 9 anos. Para o futuro, planeja ser boa irmã, cuidar do garoto e trabalhar com o ex-marido.

Durante as aulas, a terapeuta ocupacional Marina Rodrigues estimula a ampliação das habilidades. Os internos rompem a dificuldade inicial de expressão, soltam a criatividade e produzem mosaico, decoupagem, pintura em tela. Uma das motivações para a abstinência é o esforço de largar o vício “só por hoje”, como ensina um dos 12 passos do AA e NA.  A expectativa é de que a meta diária se estenda até o fim da vida.

Abstinência

Em média, o dependente fica internado de um mês a 45 dias, de acordo com o caso pode estender-se por mais tempo. Segundo Alessandra, cada pessoa recebe atenção e cuidado individualizados “num ambiente livre de preconceitos. Recebemos médico, morador de rua, homossexual, transexual. Priorizamos o respeito, independentemente de sexo e posição social”. Em geral, os 15 primeiros dias da internação é o período mais crítico da desintoxicação. O dependente de álcool pode sentir tremor, náusea, vômito, suor intenso, febre, insônia e até alucinação auditiva e visual. Oscilação de humor, irritabilidade, ansiedade e insônia são as principais queixas do usuário de drogas em abstinência. Sem contar a fissura pelo produto químico.

De acordo com a pesquisa, 41% dos internados estão desempregados e 55% deles são solteiros; 30% concluíram o ensino médio e 7%, o ensino superior. Em relação à renda familiar, 29% ganham entre dois e três salários mínimos e 21%, mais que cinco salários mínimos. A idade média dos pacientes é 34 anos. As principais consequências entre os dependentes químicos são o transtorno afetivo bipolar, os transtornos de personalidade, a depressão recorrente, a esquizofrenia, obsessão pelo jogo, o transtorno de déficit de atenção e a hiperatividade

Dependentes usam vários entorpecentes

Quase metade dos pacientes (48%) atendidos na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) de São Bernardo do Campo é dependente de mais de uma substância. As mais comuns são cocaína, crack, maconha, álcool e cigarro. Esta é a constatação de pesquisa realizada com pessoas tratadas ou em atendimento na primeira clínica pública de dependência química do País.

“A predominância de usuários de múltiplas substâncias se deve também ao fácil acesso. O perfil destes pacientes é extremamente marcado pela impulsividade e compulsão das mais diversas (sexo, jogos, compras). São os chamados dependentes cruzados, onde cada droga entra num contexto de aliviar o estado causado pela outra, como, por exemplo, excitação e calmaria”, afirma a psiquiatra Alessandra.

Quase 40% deles têm grau de dependência grave de álcool e 30%, leve. Em 38% dos casos, a unidade registra problemas relacionados ao uso de drogas em nível severo. Apenas 2% são atribuídos como nível leve. Do total de usuários atendidos, 75% têm alta clínica e apenas 3% abandonam o tratamento. Nos seis meses de funcionamento, houve a reinternação de apenas quatro pacientes.

Jovens seguem exemplo da família

Metade dos adolescentes que consome bebidas alcoólicas demasiadamente tem pai ou mãe que também ingere álcool com frequência, aponta pesquisa do Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod). O levantamento baseia-se nos atendimentos da unidade, realizados entre 2002 e 2009, com 512 pacientes entre 12 e 17 anos, que apresentaram sintomas preocupantes quanto ao uso de bebida alcoólica. Do total de pessoas ouvidas, 86% são do sexo masculino. Desses, 256 afirmaram ter parentes que também fazem uso abusivo de álcool.

Para 4,36% dos entrevistados, o álcool é a droga mais consumida. Entre aqueles que apontaram o álcool como droga principal, 22% começaram a beber aos 13 anos e 15%, aos 11. “O alcoolismo é uma doença que demora a ser diagnosticada. Não é um vício que se consolida rapidamente. Jovens que começam a beber precocemente preocupam porque com o passar dos anos esse hábito pode transformar-se em vício. Iniciar o vício com pouca idade ocasiona sérios danos à saúde”, afirma o psicólogo Wagner Abril Souto, autor da pesquisa e coordenador do programa de adolescentes do Cratod.

Serviço

Uniad recebe relatório médico de caso grave de intoxicação somente pelo FAX (11) 4353-5400. Paciente sujeito à triagem.

Cratod oferece tratamento gratuito para dependentes de álcool, tabaco e outras drogas. Fica na Rua Prates, 165 – Bom Retiro.

(*) Nomes fictícios

Da Agência Imprensa Oficial