#Profissões: Por meio da arte, agentes penitenciários derrubam preconceitos

Iniciativa de servidores da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, Grupo Teatral Do Lado de Cá tem a participação dos detentos

seg, 22/05/2017 - 11h42 | Do Portal do Governo

Eles querem derrubar preconceitos, tocar os corações das pessoas, humanizar os detentos e, assim, reintegrá-los à sociedade. E o caminho encontrado para tornar possível essa empreitada foi a arte. Essa é a proposta de um grupo de agentes penitenciários que está fazendo um trabalho revolucionário na Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, no município de Guarulhos.

Eles conquistaram o aval da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP), responsável pela gestão das unidades prisionais do Estado, e da própria direção geral do presídio, para desenvolver um programa que envolve teatro e a participação de agentes penitenciários e detentos.

Com apoio do Judiciário, o Grupo Teatral Do Lado de Cá extrapolou o limites das muralhas do presídio e despertou primeiro o interesse do cineasta Fernando Grostein, que dirigiu e produziu o longa nacional “A Quebrada”, cuja trama envolve a temática das penitenciárias; e, depois, a TV Globo, que está prestes a lançar o seriado “Carcereiros”, baseado no livro homônimo do médico e escritor Drauzio Varella, autor também de “Carandiru” e “Prisioneiras”.

Tudo começou em 2008, em outra unidade penitenciária, a José Parada Neto, também em Guarulhos, com o agente penitenciário Igor Rocha, que foi aluno do teatrólogo Augusto Boal, morto em 2009, e que se notabilizou por criar o Teatro do Oprimido, método de encenação e produção teatral cuja proposta é unir dramaturgia e ação social. “O início foi complicado, passamos maus bocados e enfrentamos muitos preconceitos”, admite Igor.

A arte liberta
Igor iniciou como agente penitenciário aos 40 anos de idade, depois de uma frustrada carreira como empresário. Em 1990, ele tinha uma empresa que faliu devido à crise econômica que abalou o país à época, durante o governo de Fernando Collor de Melo.

Desempregado, ele foi aprovado em dois concursos públicos e escolheu seguir a carreira de agente penitenciário, porque o salário era melhor. Saído de uma crise de depressão, disse que o teatro transformou sua vida. Na Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, Igor prosseguiu com o trabalho iniciado na Parada Neto e o ampliou, possibilitando a participação dos detentos.

“A arte liberta”, afirma Roney do Nascimento, diretor de Segurança e Disciplina do Presídio Adriano Marrey, que compartilha da iniciativa com Igor e o diretor de Trabalho e Educação da mesma unidade prisional, Valdinei Araujo de Freitas.

Roney e Valdinei são mais jovens que Igor mas estão há mais tempo na profissão, pois começaram ainda cedo como agentes penitenciários. Roney passou no concurso quando tinha 19 anos: “Nunca pensei em trabalhar com presos, meu sonho de adolescente era ser desenhista, mas estava desempregado e um vizinho que costumava acompanhar o Diário Oficial me avisou da abertura do concurso público. Decidi participar e fui aprovado”.

A esperança dele era ser destacado para algum serviço administrativo, mas, em vez disso, foi parar dentro do presídio para cuidar dos presos e não deixou mais a função. A escolha pela carreira acaba sendo a mesma para todos: a necessidade de trabalhar e a estabilidade do emprego público. Mas o ofício é difícil e as situações às vezes fogem do controle. “O agente penitenciário não leva os problemas para casa, não compartilha com a família, mas com os próprios colegas de profissão, que se tornam amigos depois de anos de trabalho”, afirma Igor.

O que diferencia uns de outros é que alguns encaram a profissão como um trabalho, que deve ser bem desempenhado, e outros acabam se dedicando com afinco à atividade e fazendo dela uma missão de vida. Ou, como define Roney, injetam o “sistema penal na veia”. “Não há rotina nesse trabalho”, afirma. “Todo dia é diferente. Tenho 24 anos de sistema prisional e, quando se pensa que a gente aprendeu, aparece um dia um jovem de 18 anos que acaba aprontando alguma. Há sempre uma situação diferente”, completa.

Carcereiros
Carcereiro é sinônimo para agente penitenciário e o termo era mais usado pela Polícia Civil para denominar o funcionário que abria e fechava a porta das cadeias nas delegacias. Nas penitenciárias e centros de detenção provisória (CDP) a designação é Agente de Segurança Penitenciária.

O termo não é considerado pejorativo pelos agentes penitenciários e tampouco o autor do livro homônimo, Drauzio Varella, quis denegrir os colegas, que tanto tempo passaram com ele, ao nomear o livro com o termo. Varella trabalhou como médico voluntário na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, no prédio que foi parcialmente demolido pelo Governo do Estado, em 2002.

A designação detento também não é a mais apropriada. O mais correto é o termo Reeducando, mais de acordo com a Lei de Execução Penal, que tem por objetivo a reinserção da pessoa que transgrediu a lei e que necessita ser reinserida na sociedade, depois de cumprir a pena determinada pela Justiça.

Valdinei Araújo, natural de uma pequena cidade do litoral paulista, também ingressou jovem na Secretaria da Administração Penitenciária, como agente penitenciário: tinha apenas 21 anos e exerce o cargo há 22 anos. “Eu morava em Mongaguá, que tem 10 mil habitantes. Estava desempregado e foi o que surgiu na época. A gente aprende a gostar do que faz”, afirma.

O gosto foi tanto que ele também passou a se ocupar em quebrar preconceitos. “Nossa tarefa é mostrar aos colegas que o sistema penal mudou e que o mundo não é só isso: abrir e fechar portas”, afirma Valdinei. Para ele, a função do agente é cumprir o que determina a Lei de Execução Penal.

“É a profissão mais complexa que existe”, define Roney. “A gente tem que ser psicólogo, assistente social, a pessoa que pune e a mão que afaga”, explica. “Nossa tarefa é fazer com que os direitos dos detentos sejam respeitados, mas também é necessário ser firme para exercer a função”, complementa.

Na penitenciária, os agentes procuram ajudar os detentos no que podem. A população é muito carente e a maioria possui baixo nível escolar. Na Adriano Marrey há, inclusive, um serviço de emissão de documentos de identidade, porque muitos não o possuem.

Experiência
Na Escola da Administração Penitenciária, mantida desde a década de 1960 pela Secretaria da Administração Penitenciária para a formação dos servidores penitenciários, se aprende, entre outras disciplinas, Direitos Humanos, Lei de Execução Penal e até Defesa Pessoal. Mas o ofício, segundo Roney, se aprende mesmo com os mais velhos, as pessoas que têm experiência.

Gente abnegada e determinada como Antonio Samuel de Oliveira Filho, diretor geral da Adriano Marrey, há 39 anos no sistema prisional. Ele já poderia estar aposentado, mas continua trabalhando. “Às vezes, surge um impasse difícil de ser solucionado, a gente leva horas e não consegue resolver, mas aí, ele vem, conversa por cinco minutos com os presos, e o caso está resolvido”, comenta Roney, que considera o diretor geral um mestre.

Os agentes penitenciários da Adriano Marrey querem derrubar a concepção preconceituosa que predomina em alguns setores da sociedade em relação aos detentos e aos próprios agentes penitenciários. De acordo com ela, os primeiros devem ficar confinados nos presídios e, de preferência, esquecidos lá, sem oportunidade de recuperação. Os agentes penitenciários, via de regra, são vistos como violentos e corruptos, conforme quase sempre são retratados nos filmes.

Para esses agentes penitenciários, a mentalidade de achar que basta prender as pessoas e esquecer que elas existem, é insensata. “A gente não está colocando um leão na jaula. Esse cara que entrou aqui um dia pode sair pior do que entrou, dependendo do tratamento que receber. Aqui, ele vai sair melhor”, garante Roney.

Os agentes penitenciários também querem mudar o comportamento do preso, que se coloca no papel de vítima, como se o mundo todo conspirasse contra ele. O objetivo é despertar o senso crítico para fazer com que ele reconheça que está ali devido ao erro que cometeu.

Preparando o retorno
Igor Rocha sente quando o detento está preparado para enfrentar o desafio de retornar à sociedade, por suas atitudes. Certa vez, um detento do grupo de teatro lhe disse: “Acho que se eu pedir perdão para a vítima ela vai me perdoar, mas quando olho no espelho e me vejo não consigo me perdoar pelo tanto de maldade que pratiquei”. Depois que ouviu isso, Igor disse que teve a certeza que aquela pessoa estava preparada para assumir o seu papel como cidadão.

Normalmente, explica Roney, o tratamento nos corredores é bastante formal e os detentos tratam os agentes penitenciários de modo respeitoso. Há um distanciamento. Quando estão nas aulas, porém, tudo se transforma e agentes penitenciários e detentos confraternizam como iguais. “É um momento em que eles (os detentos) se sentem livres”, avalia Igor.

Em 2010, ao iniciar o programa de teatro e outras atividades artísticas na Augusto Marrey, os agentes penitenciários fizeram uma seleção dos detentos que iriam participar do programa. Segundo Igor, se inscreveram de 120 a 180 presos. “Desses, selecionamos 30 e, dos 30, sobraram nove”. O agente penitenciário também dá aulas de Direitos Humanos para os colegas na Escola de Administração Penitenciária, com a utilização de recursos cênicos.

O primeiro teste é a quebra do preconceito. “Ao iniciar a aula eu fecho a porta e minha primeira frase é: ‘hoje nós vamos dançar balé’, e o sujeito responde: ‘sou sujeito homem, o que os caras vão dizer desse balé?'”. A provocação, afirma Igor, é para que as pessoas deixem o preconceito de lado e, se a peça exigir que desempenhe o papel de homossexual, se humanize e coloque-se no lugar dos outros.

A série
Igor, Roney e Valdecir, assim como outros agentes penitenciários, participaram dos depoimentos do seriado “Carcereiros”, que a Globo deve apresentar em breve, e do documentário que a mesma emissora vai exibir, ainda sem data marcada. Os três foram convidados pela emissora para um jantar. Quando chegaram ao restaurante, quem os aguardava era Drauzio Varella, que Igor já conhecia, e o jornalista Pedro Bial.

Os agentes sugeriram mudanças no roteiro, como forma de atualizar as histórias do livro dos anos 90 para fatos mais recentes. As sugestões foram incorporadas à série que vai acompanhar o cotidiano dos agentes penitenciários, com cenas gravadas em unidades prisionais da SAP.

Eles receberam também um profissional da rede norte-americana HBO, que passou muitas horas no presídio e que tinha em mãos um roteiro sobre um agente penitenciário corrupto. Depois de tudo o que ele viu e observou, resolveu mudar totalmente o script para um retrato mais próximo da realidade.

A família
As duas coisas que mais interessam aos detentos são a liberdade e a família. Por isso, os agentes penitenciários sempre chamam os parentes para assistir às apresentações, o que tem gerado situações emocionantes.

Em uma delas, a mulher de um dos atores assistia à apresentação e, antes de terminar a peça, Igor a chamou para dançar com o marido. Depois, o detento, emocionado, disse que aquela tinha sido a primeira vez que havia dançado com a esposa. Em outra situação, a peça deu a chance de o pai rever a filha depois de quatro anos de separação. “Até o mais duro dos agentes penitenciários chorou”, disse Roney.

O apoio do Judiciário tem sido essencial para as apresentações dos trabalhos fora dos muros da penitenciária. Em uma delas, o grupo de teatro, com 25 integrantes, se apresentou em uma universidade da região para uma plateia de aproximadamente 800 pessoas.

Os resultados desse trabalho são observados de perto. Entre 2010 e 2016, Igor fez uma pesquisa para acompanhar os passos de egressos da penitenciária que participaram do programa. “Para a nossa surpresa, dos 180 que participaram do curso, só três se tornaram reincidentes”, revela.

Além do Grupo Teatral do Lado de Cá, os agentes penitenciários também criaram um coral com a participação dos presos, que faz apresentações em separado ou em conjunto com as peças teatrais. O Coral Próximo Encontro, composto por 30 detentos, chegou a receber a visita do tenor italiano Andrea Bocelli, que foi conhecer o projeto na penitenciária e assistir a uma apresentação. “É impressionante ver as pessoas com baixo nível escolar aprenderem a cantar em latim ou espanhol, nas apresentações de músicas latinas. É muito emocionante”, afirma Igor.

A Penitenciária Adriano Marrey tem uma população carcerária de 2.200 pessoas e, segundo os agentes penitenciários, era uma unidade tida como problemática e que agora vive uma situação de normalidade, sem tumultos e rebeliões. Tudo isso graças à arte, do teatro e de viver dos profissionais retratados nesta matéria.