USP Zona Leste testa vanguarda no ensino

Folha de S. Paulo - São Paulo - Sexta-feira, 11 de março de 2005

sex, 11/03/2005 - 9h03 | Do Portal do Governo

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Afinal, a USP Zona Leste está mais para USP ou mais para zona leste? A pergunta, com toda a carga de preconceitos que possa ter, se dissipa com uma rápida visita pelo novo campus. Novo? Novíssimo. O cheiro de tinta fresca está em toda parte, e uma experiência pedagógica inédita começa a ser tentada ali.

Depois de pegar a saída 17 da rodovia Ayrton Senna (um pouco mais adiante já é o caminho para o aeroporto de Cumbica), o visitante logo repara nas placas prateadas, com o conhecido logotipo da USP: letras largas, em preto e branco, sobre as quais, rasgada em azul como uma espécie de marca do Zorro, aparece com orgulho a palavra ‘leste’.

Os dois blocos já construídos (aproximadamente 12% de toda a área projetada), com apenas três andares, parecem modestos se comparados ao quilométrico galpão da Siderúrgica Belgo Mineira, ali ao lado, e ao imenso descampado que se estende à sua frente. Mas sobra espaço para os pouco mais de mil alunos que começam a freqüentar o local.

Com a estrada e as montanhas ao longe, o campus lembra mais um aeroporto tranqüilo de cidade do interior, ou uma pequena faculdade de agronomia na fronteira de Mato Grosso, do que uma segunda USP no caos da periferia paulistana.

Com exceção de uma ou outra saia comprida de evangélica, ou do aspecto mais descuidado de algum militante do terceiro setor, o que predomina no visual dos alunos é o padrão da classe média branca de um cursinho na Vila Mariana ou na avenida Paulista. Do total dos estudantes, 42% são da região -incluindo Guarulhos e arredores. Dos 65 professores, nenhum mora por lá.

Contudo, 44% dos matriculados na USP Leste provêm da escola pública. Na ‘USP Oeste’, diz o vice-coordenador do Ciclo Básico, Ulisses Araújo, ‘são só 20%’.

Cinco professores na classe

As maiores novidades aparecem na estrutura curricular e na dinâmica de aula. Numa classe repleta de pernilongos, 60 alunos, nesta quarta-feira à noite, assistiam à primeira aula de uma disciplina intitulada ‘resolução de problemas’. Estão matriculados em três cursos diferentes: gestão de políticas públicas, sistemas de informação e lazer e turismo.

Nada de direito ou medicina. Pelo estatuto da USP, nenhum curso oferecido na zona oeste pode ser repetido na zona leste. Além dos já citados, o vestibulando pôde escolher entre gestão ambiental, gerontologia, obstetrícia, marketing, tecnologia têxtil e da indumentária, ciência da atividade física e ciências da natureza.

As matérias ensinadas no ciclo básico também são inusitadas: ‘sociedade, multiculturalismo e direitos’, ‘ferramentas de informática’ ou ‘cultura, comunicação e criatividade’.

Na sala de aula, outra surpresa. Os professores de ‘resolução de problemas’ se apresentam. Há uma geógrafa, um professor de cinema, dois especialistas em computação e um doutor em psicologia. Os cinco, na mesma classe, se encarregarão de orientar os alunos na elaboração de monografias científicas – ‘obedecendo às normas da Fapesp’, frisa o professor Ulisses Araújo. Os trabalhos serão feitos em grupos de 12 alunos, a partir de um problema comum – que será definido em conjunto pela classe.

Na projeção em power point (há um computador em cada classe, e todas as disciplinas terão seu site online), sucedem-se as regras e instruções. A média de cada aluno será resultado da ponderação entre notas individuais, auto-avaliações e notas para o grupo.

Cada grupo terá coordenador e secretário em rodízio semanal. A carga de leituras de todo o curso será medida num sistema de planilhas, conforme o ‘feedback’ dos alunos.

A ênfase é no trabalho coletivo e numa produção científica voltada para questões práticas da comunidade. Que tipo de problema, então, será objeto das monografias dos diferentes grupos? Nesta primeira aula, ainda é cedo para definir. A classe discute primeiro qual a área mais geral de seu interesse: ‘cidadania e desigualdades’, ‘qualidade de vida e ocupação espacial’ ou ‘tecnologia e sociedade’?

Para estimular a discussão, o professor exibe o curta-metragem ‘Ilha das Flores’, de Jorge Furtado, que vários alunos demonstram já ter visto. Trata-se de um curta-metragem clássico em salas de aula, que denuncia com impacto as condições de vida num lixão em Porto Alegre.
Interessa agora relacionar o filme com as três áreas de interesse propostas anteriormente.

Os alunos participam de bom grado, sem que ninguém monopolize a palavra. O espírito das intervenções converge: critica-se o predomínio de uma cidadania apenas formal, de um sistema injusto, de uma tecnologia nem sempre voltada aos interesses da população. ‘A questão da cidadania passa pelo recorte econômico’, diz alguém. Outro aluno ressalta a ‘suscetibilidade do ser humano a obedecer a uma ordem social qualquer’. Estamos na USP, afinal.

Mas a consciência de todos é também a de que se está na zona leste, que os problemas apontados no filme de Jorge Furtado se repetem ali mesmo, e que as monografias a serem elaboradas deverão ter um sentido prático -embora não necessariamente preso às questões específicas da região. Alunos e professores parecem imbuídos de um sentido de missão. Vários estudantes vestem a camiseta preta com o nome do curso e o logotipo: ‘USP Zona Leste. Com muito orgulho.’.