Os reis dos musicais

O Estado de S. Paulo

ter, 12/01/2010 - 8h19 | Do Portal do Governo

A parceria entre Charles Möeller e Claudio Botelho inspira livro que recupera os esforços e o talento da dupla em renovar um gênero sempre presente no Brasil

No primeiro espetáculo, As Malvadas, de 1997, o dinheiro era curto e a plateia era formada em sua maioria por amigos e convidados. Hoje, a assinatura da dupla Charles Möeller e Claudio Botelho tornou-se valiosa – em pouco mais de dez anos, eles aproveitaram o ressurgimento do musical no Brasil (agora sob a forte influência do estilo Broadway) e se firmaram como Os Reis dos Musicais (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), título do apurado livro de Tânia Carvalho sobre sua trajetória que será lançado hoje, no Rio.

Trata-se de um balanço feito pela dupla a respeito basicamente dos 23 espetáculos que criaram juntos. Uma lista tão diversificada e atraente que rendeu até um pocket, Versão Brasileira, um pequeno musical em que Botelho, dirigido por Möeller, faz um apanhado de canções que fizeram parte dessas montagens. A estreia ocorre hoje, no Espaço Sesc, no Rio, seguido do lançamento do livro de Tânia.

Botelho e Möeller sabem que não descobriram a pólvora – o musical é um estilo praticado no Brasil desde o início do século 19 (veja no texto abaixo). Mas conseguiram a alquimia certa, ou seja, unir o apuro técnico e o senso profissional da Broadway com a familiaridade musical típica do brasileiro. Com isso, aproveitaram o grande impulso promovido pelos investimentos da CIE Brasil (hoje Time For Fun) que, a partir de Les Misérables, em 2001, colocou o País na rota dos musicais.

Na época, porém, o terreno ainda era árido. “O som era uma tragédia, as pessoas usavam microfones amarrados, tudo chiava e apitava”, relembra Möeller, em depoimento para o livro. “A luz não era de musical, era uma luz de peça normal, sem o menor cuidado e incapaz de preparar o clima para a música; os cenários rangiam, demoravam minutos para serem trocados, ou seja, nada funcionava.”

O desastre continuava em cena, quando era raro encontrar um profissional que soubesse cantar, dançar e interpretar. O aprendizado, portanto, foi mútuo: ao mesmo tempo em que se alimentavam anualmente na Broadway e em Londres, onde assistiam às novidades, Möeller e Botelho participaram da formação e aprimoramento de profissionais como Claudia Netto e Kiara Sasso, entre outros.

Conquistaram ainda o reconhecimento externo, a ponto de receberem na plateia de sua montagem de Company, em 2001, a presença do próprio autor, o lendário americano Stephen Sondheim. “Ele foi aos bastidores falar com o elenco”, conta Möeller. “Suas palavras eram um misto de elogios e de surpresa por encontrar um elenco tão preparado no Brasil, país que ainda não tem (ou não tinha) nenhuma inscrição no mapa de produção de musicais pelo mundo.”

Company, aliás, foi um dos primeiros projetos mais ousados assumidos pela dupla que, além das apostas em espetáculos já consagrados lá fora (como Sweet Charity e A Noviça Rebelde), investiu tanto no cancioneiro nacional (como uma nova versão de Ópera do Malandro, de Chico Buarque) como em montagens mais radicais, cujo exemplo é o recente e desbocado Avenida Q.

Com tamanha bagagem, Möeller e Botelho resolveram se aventurar em uma criação própria e, a partir de canções originais de Ed Motta e de uma ideia de Möeller vagamente inspirada na história de Branca de Neve, surgiu 7 – O Musical, em 2007, espetáculo dark cujo cenário à la Tim Burton traz o Rio como uma cidade escura, tenebrosa e onde até neve cai. “Como dramaturgia, o musical é sofisticado e surpreendente”, escreveu Mariângela Alves de Lima no Estado. “A música é inquietante, repleta de fusões deliberadas entre gêneros e estilos.”

Möeller e Botelho contam que a perenidade da parceria está justamente no convívio das diferenças. “Deve-se a Charles o apuro estético, visual, o desempenho dos atores e até mesmo os fundamentos teóricos de cada espetáculo”, conta Botelho. “A mim cabe cuidar da música, o que em musical geralmente não é tão pouco.” É desse atrito que a dupla tanto envereda para novos meios (eles foram responsável pelos números musicais da microssérie Dalva e Herivelto) como aposta em trabalhos ambiciosos, como O Despertar da Primavera, que chega em março a São Paulo trazendo um novo talento, Rodrigo Pandolfo.

Trechos

Company (2000): Até a Sondheim Review, publicação norte-americana especializada na obra do próprio, estranhou uma montagem brasileira do compositor e veio conferir, fazendo matéria de quatro páginas e dando uma crítica absolutamente favorável ao espetáculo. E, em Company, dissemos adeus às imposições. Fizemos exatamente o que queríamos.

Ópera do Malandro (2003): Quando começamos a produção, todo mundo falava: essa peça não vai dar certo, é uma loucura vocês mexerem nisso, isso é um patrimônio dos anos 1970. E seguimos adiante. A peça tem um viés político muito forte, que não sabia se ia interessar tanto nos dias de hoje, e é extremamente verborrágica. Isso me preocupava.

Sweety Charity (2006): Era um espetáculo muito caro, com vários bailarinos, uma orquestra de 12 músicos, figurino chiquérrimos, tudo o que o público esperaria de um espetáculo nosso com a grande estrela Cláudia Raia e uma superprodução da CIE. Tudo era muito difícil de fazer. Foi nosso primeiro trabalho no qual a dança era fundamental.