Novos caminhos e desafios de uma maestrina

O Estado de S. Paulo

ter, 07/07/2009 - 8h09 | Do Portal do Governo

Lígia Amadio, que acaba de ser anunciada nova diretora da Sinfônica da USP, fala da carreira, de projetos e de preconceito

Músicos costumam ter momentos de revelação, de encontro com sua arte, redefinindo toda sua trajetória. Com a maestrina Lígia Amadio, não foi diferente. Aconteceu no terceiro ano da faculdade… de engenharia. “Eu estudei piano desde os 5 anos de idade, mas sem pretensões profissionais. Como profissão, escolhi engenharia de produção. Lembro que um dia fui ao Teatro Municipal, comprei ingresso lá na galeria, não via nada do que acontecia no palco. O programa tinha obras de Haydn. Chorei do começo ao fim. E a sensação eu lembro muito bem: não tinha jeito, eu precisava da música. Engenharia não tinha nada a ver comigo”, ela conta. Ainda assim, formou-se na Escola Politécnica. Prestou novo vestibular. E optou pela regência. Não foi fácil, ela conta. Mas o sacrifício parece ter compensado. Lígia assumiu no início do ano a Orquestra Sinfônica de Campinas, a principal do interior de São Paulo. E acaba de ser anunciada como diretora artística e regente titular da Sinfônica da USP.

No domingo pela manhã, Lígia regeu a orquestra campineira em programa francês, com o Concerto nº 3 de Saint-Saëns, com o violinista chinês Yang Liu, e a Sinfonia Fantástica, de Berlioz (o mesmo programa eles repetem no Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão, hoje à noite). Foi ainda com a viagem pela fantasia de amor recriada por Berlioz na cabeça que ela conversou com o Estado. “Gostei muito do resultado da orquestra”, ela diz. “É uma peça complicada, que expõe todos os naipes de maneira muito crua. E dá para sentir a evolução do conjunto.” Depois de mais de dez anos no Rio, onde comandou a Sinfônica Nacional, ela se diz feliz de voltar a São Paulo. Em Campinas, Lígia tem investido na sonoridade do conjunto e na presença de solistas de nível internacional o que, segundo ela, ajuda a refinar o trabalho de qualquer orquestra – além de Liu, o pianista Nelson Freire vai se apresentar com eles em setembro, interpretando o Concerto nº 2 de Chopin. No mais, ela trabalha pela realização do concurso que vai completar os quadros da sinfônica, que hoje precisa de mais 30 músicos. E na construção de um novo auditório.

Na USP, o trabalho está apenas começando. A orquestra vai manter sua temporada para este ano, que não inclui concertos com Lígia, que deve começar a comandá-la apenas em 2010. Ela se diz encantada com o ambiente de trabalho dentro do grupo. E acredita que, durante o segundo semestre, terá tempo de conhecer melhor a orquestra e montar novas linhas de programação. “Não acredito em orquestra perfeita. A busca pela qualidade deve ser constante, seja na USP, em Berlim ou no fim do mundo. O trabalho de um maestro é conhecer sua orquestra, entender suas deficiências e possibilidades e, a partir daí, criar uma linha trabalho para elevar cada vez mais o nível artístico.” Ela já tem em mente alguns planos. “É preciso pensar no sentido de uma orquestra ligada à universidade. E acho importante que exista investimento em uma interação intelectual maior. O que seria uma pesquisa para uma orquestra? Tocar, entrar em contato com o público, discutir a experiência do teatro. Divulgar a música brasileira, gravá-la. Estou muito esperançosa de que aja apoio da universidade nesse sentido. Precisamos pensar em parcerias com a ECA, aproximar o grupo dos alunos, ou com o Instituto de Estudos Brasileiros, onde está, por exemplo, todo o acervo do compositor Camargo Guarnieri. Há um campo imenso, inexplorado. Vou lutar para completar os quadros da orquestra, que está desfalcada. O trabalho desenvolvido por Carlos Moreno (seu antecessor) foi incrível. Mas a Osusp ainda está no meio do caminho. Precisa ir adiante.” Outro projeto é, a partir dos 35 anos da orquestra, a serem completados em 2010, criar uma coleção de gravações históricas. “Há um acervo incrível de registros, ainda em rolo de fita, desses anos todos. Coisas raríssimas, que, se houver apoio, devemos remasterizar e lançar. Além disso, de cara eu penso em gravar compositores paulistas, essa pode ser uma função da orquestra.”

Lígia fala com paixão de seus planos, sabe que não é fácil colocá-los em prática. Na Sinfônica Nacional, lembra, trabalhar significava “matar um leão por dia”; nos últimos tempos, precisou pagar do próprio bolso o cachê de solistas. Mas não teme desafios. “Quando me formei em engenharia, saí da faculdade com várias propostas de emprego. Eram todas de empresas de produtos femininos. Imagina, naquela época quase não existia mulheres engenheiras, os convites não eram para estágio, não, era para ser diretora”, ela conta, rindo. “Mas eu queria ser musicista. E não posso dizer que nunca trabalhei como engenheira. Na verdade, fiz um estágio de seis meses numa empresa que fabricava parafusos, pode uma coisa dessas?” Ela estudou dez anos com o austríaco radicado no Brasil Hans Joachim Koellreutter e fez sua graduação na Unicamp; o mestrado teve como orientador o compositor Almeida Prado. Em algum momento, pensou em desistir? “Sim, claro. Eu estava formada, com propostas de emprego. E, de repente, eu me mudo para Campinas, sem um tostão no bolso, vim morar em um pensionato de freiras, comi o pão que o diabo amassou. E escolhi a regência. Eu até tinha uma voz boa, de soprano dramática, mas ao decidir meu rumo profissional, queria uma carreira que fosse o mais longeva possível. O canto não me daria isso. Só que o problema com a regência é que é uma loteria. Você não sabe se vai conseguir alguma coisa. Um violinista, se for bom, não fica sem emprego, há muitas orquestras e vagas. Agora, um maestro? Difícil.”

À formação brasileira ela acrescentou dezenas de cursos lá fora. Aqui, dava aulas em um conservatório em Osasco. Guardava dinheiro o ano todo e, nas férias de verão e inverno, embarcava para a Europa. Frequentou cursos na Itália, Áustria, Holanda, Rússia, Checoslováquia. Enfrentou preconceito por ser mulher? Há alguns anos, em uma entrevista, disse ao Estado que não, que onde há talento, há espaço. Continua acreditando no talento. Mas repensou sua posição. “Fui uma inocente útil ao falar que não há preconceito. Há sim, muito. Desde pequena estou acostumada com ambientes masculinos. Na faculdade de engenharia, imagina, eram 80 homens para pouquíssimas mulheres. Na regência acontece algo parecido. Mas sempre encarei isso de maneira natural. O que não quer dizer, porém, que não seja difícil estar em uma posição de poder sendo mulher. Na sua frente, há carinho, respeito. Pelas costas, é horrível, e não se trata apenas de comentários feitos por homens mas também, e talvez principalmente, por musicistas. É uma condição profundamente solitária.”