Trabalho inédito é apresentado sobre ensino de Física para deficientes visuais

Materiais como barbantes e tábuas com pregos estimulam a compreensão de fenômenos por meio do tato

ter, 20/03/2007 - 22h10 | Do Portal do Governo

Professores que possuem alunos cegos ou com deficiência visual poderão receber um grande apoio de um trabalho inédito sobre ensino e aprendizagem da Física feito no campus da Unesp de Bauru. A proposta contém orientações sobre a didática em classes mistas – que reúnem estudantes com visão normal e com algum tipo de limitação visual – e usa experimentos que ajudam a compreensão de fenômenos por meio do tato. Fruto do pós-doutorado realizado por Eder Pires de Camargo na Faculdade de Ciências (FC), o estudo foi publicado no final de 2006 na revista eletrônica Educação em Ciências e tem sido apresentado em vários eventos.

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), há 24 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência física ou mental no País, sendo metade delas cegas. O número de portadores de necessidades especiais na rede regular de ensino cresceu 229% de 1998 a 2003. “A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1998 estimulou a inclusão de deficientes, sem preparar os professores para tamanho desafio”, observa Camargo, que leciona na Faculdade de Engenharia (FE), campus de Ilha Solteira, e é o único docente cego em atividade da Unesp.

Em 2005, Camargo acompanhou 22 licenciandos na preparação de um minicurso de 80 horas para uma turma mista do Colégio Técnico Industrial da Unesp de Bauru, formada por 35 alunos com visão normal e dois cegos. Todas as aulas foram filmadas. “Primeiro, planejamos os módulos e a preparação de material de ensino e, depois, fizemos uma reflexão sobre as dificuldades e possíveis soluções na relação do ensino de Física e a deficiência visual”, conta.

Tato e audição

Camargo elaborou materiais que simulam fenômenos nas áreas de óptica, eletromagnetismo, mecânica, termologia e física moderna. O trabalho foi baseado na sua experiência pessoal e no acompanhamento das dificuldades dos licenciandos durante as aulas. “Procuramos elaborar o material explorando os outros sentidos do aluno, como tato e audição”, esclarece.

Um dos maiores desafios da equipe foi ensinar óptica. No ensino tradicional, o professor traça, por exemplo, retas na lousa para representar a trajetória dos raios de luz. Já no modelo de Camargo, a dispersão e refração da luz são simuladas por meio de um barbante que o aluno segura nas mãos. Em eletromagnetismo, para explicar o processo de condução de eletricidade, é usada uma tábua inclinada com pregos e esferas. A inclinação indica a potência elétrica (quanto maior a inclinação, maior a potência), os pregos simulam a estrutura de um material condutor, enquanto as esferas representam os elétrons. “Com a maquete, é possível diferenciar a potência elétrica da corrente elétrica”, explica.

Não foram utilizados computadores e livros didáticos em braile. “Esse tipo de publicação é rara no Brasil e os computadores são caros, bem como os materiais para cegos”, afirma o físico, que planeja a construção em Ilha Solteira de um laboratório de ensino de Física para alunos com deficiência visual.

Estímulo à inclusão

Os licenciandos receberam orientações de como conduzir aulas com a presença de cegos, por exemplo, ditando o que é escrito na lousa – o que pode ser feito também pelos alunos com visão normal. “O contato com os outros colegas é fundamental para o processo de aprendizagem e inclusão dos cegos”, aponta Camargo. “Aconselhamos os licenciandos a conhecer os níveis de visão dos deficientes e, assim, proporcionar canais de comunicação, valorizando percepções não visuais, estimulando o diálogo e a livre expressão de idéias.”

O trabalho foi avaliado por entrevistas e acompanhamento das aulas, para analisar a capacidade dos licenciandos de apresentar atividades adequadas para esse público. Débora de Almeida, uma das graduandas da FC que elaboraram o minicurso, conta que, no início, não acreditava ser possível ensinar Física para quem não consegue ver. “Havíamos visitado salas de aula com deficientes e constatamos que eles ficavam praticamente abandonados”, relata. “Foi recompensador perceber como eles conseguiram entender os conceitos e até fazer questionamentos em que nunca tínhamos pensado.”

Segundo o coordenador do pós-doutorado, Roberto Nardi, docente do curso de licenciatura em Física da FC/Bauru, a grande repercussão do trabalho é explicada pela atualidade da proposta. “Há uma grande demanda, não só na área de Física, por novas alternativas de ensino para alunos com limitações visuais”, comenta.

Docente toca violão e já correu a São Silvestre

A história de um cego que aos 34 anos já concluiu o pós-doutorado não é apenas um exemplo de força de vontade e dedicação pessoal, mas também da importância do professor na vida de um estudante deficiente. Depois de constatado o avanço de seu problema de visão, quando tinha nove anos, Eder Camargo pensou várias vezes em abandonar a escola.

“Foi um professor do ensino médio quem mais me motivou a continuar, pois ele não se conformava que eu parasse os estudos por causa da perda acentuada da visão”, conta Camargo. A família também teve um papel primordial para seu sucesso acadêmico. “Meus pais e meus dois irmãos me estimularam e ajudaram nas lições de casa. Já a minha esposa teve uma grande importância quando fiz o mestrado e o doutorado”, recorda.

Camargo estudou licenciatura em Física na Unesp de Bauru, onde depois fez o mestrado. Já o doutorado foi desenvolvido na Unicamp. Passou em dois concursos para docente da rede estadual de ensino, mas em um deles foi desclassificado na perícia médica. “Os médicos me consideraram inapto para dar aulas”, enfatiza.

Em maio do ano passado, foi aprovado no concurso para lecionar as disciplinas de Didática, Física Geral e Eletromagnetismo no campus de Ilha Solteira. “Isso representou uma vitória e foi resultado de muito esforço para transpor barreiras”, acentua. Nas horas vagas, Camargo se dedica ao violão e à corrida, tendo participado de duas provas de São Silvestre, em São Paulo.

Definição de cegueira

Para determinar o grau de limitação visual das pessoas, a Organização Mundial da Saúde utiliza a Tabela Optométrica de Snellen, que avalia a acuidade visual, ou seja, a capacidade para definir formas. O espectro da tabela vai de 0 a 3. São considerados cegos os indivíduos que possuem acuidade visual abaixo de 0,05. Os deficientes visuais são aqueles que possuem índice de acuidade de 0,05 a 0,3. É considerado normal quem possui acuidade avaliada entre 0,3 e 1.

Segundo a oftalmologista Silvana Schellini, da Faculdade de Medicina de Botucatu, o conceito de cegueira abrange ainda o campo visual – ou ângulo de visão –, que nos seres humanos é de no máximo 180o .“Quando o campo visual é menor que 30o, a pessoa também é considerada cega”, acrescenta.

Julio Zanella/ Jornal da UNESP

 (JH)