USP: Sambas ainda refletem a cultura popular brasileira

Religiosidade, família e festividade são exemplos de temas que se repetem nas letras de samba

seg, 14/02/2005 - 18h38 | Do Portal do Governo

O samba pode servir de base para compreensão e valorização da cultura popular brasileira. O pesquisador Ricardo Azevedo estudou cerca de sete mil letras de sambas e selecionou os temas mais recorrentes comparando-os com letras de músicas do tropicalismo. O que encontrou foi a presença de um conjunto de elementos culturais que caracterizam parte significativa da população brasileira e marcam seu discurso.

O tropicalismo foi escolhido para a comparação porque ainda hoje exerce influência nos temas da música brasileira, com exceção do samba. A pesquisa de doutoramento de Azevedo foi apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. ‘Infelizmente, poucos estudos falam das implicações da oralidade nos discursos. Isso é paradoxal num país marcado pelo analfabetismo e, portanto, pela cultura oral’, diz.

Ao comparar o samba, discurso popular, com um discurso moderno, o pesquisador encontrou diferenças resultantes da diversidade de padrões morais e de relacionamento humano. ‘Existem grandes semelhanças temáticas e de procedimentos com a palavra entre uma letra de samba de 1930 e as de Zeca Pagodinho ou Monarco criadas hoje. Trata-se de um processo construtivo diferente do moderno, não existe aquela necessidade quase mecânica de novidade’, comenta Ricardo.

Oposições
De acordo com o pesquisador, a mentalidade hierárquica e tradicional do samba – que valoriza a família, a coletividade e a religiosidade – opõe-se a características do mundo moderno, como individualismo e impessoalidade. ‘Grande parte dos sambas analisados é composta por temas como a valorização da família, o envelhecimento, a festa, o ‘nós’ em lugar do ‘eu’, a morte e o próprio samba, entre outros, expressos em linguagem marcada pela oralidade, sempre clara e acessível.

A apreciação da música também se dá de forma diferente: enquanto o samba é criado para ser ouvido no contato face-a-face, compreendido com rapidez e memorizado, as letras a partir do tropicalismo são, em princípio, criadas para serem lidas e interpretadas. Além disso nota-se a oposição entre a cultura centrada no ‘nós’ e a cultura centrada no ‘eu’. ‘Trata-se de um dado contemporâneo. O grupo ainda é muito importante para a cultura popular que continua cultivando a solidariedade, a camaradagem e os valores compartilhados.’

Nas décadas de 10 a 40, as diferentes classes, em princípio, ouviam a mesma música. Com o pós-guerra, houve uma americanização da elite. Surge então o samba-canção e a bossa nova, seguidos do tropicalismo e da jovem guarda, estes já representações da música pop. ‘Mas o samba continua mais ou menos o mesmo; acho que uma das razões para isso é que o povo segue vivendo nas mesmas condições sociais e ainda é marcado pela cultura oral. Uma outra razão: a abordagem de temas amplos como a festa, a comida e a mortalidade continua fazendo sentido hoje, pois faz parte da vida de todas as pessoas.’

Mariana Delfini – Agência USP