Instituto Butantan produz soro para neutralizar veneno de peixe peçonhento

Pesquisadores também estudam viabilidade de produzir um só soro para veneno de diversos peixes

sex, 20/05/2005 - 11h29 | Do Portal do Governo


Famoso pela produção de soro contra picada de cobras, aranhas e escorpiões, o Instituto Butantan, vinculado à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, começa a explorar também o mundo aquático para buscar uma maneira de neutralizar o veneno de peixes peçonhentos (aqueles que, além da glândula do veneno, têm um aparato inoculador, no caso, espinhos). Os estudos tiveram como ponto de partida o Thalassophryne nattereri, um peixe comum nas regiões norte e nordeste do país conhecido como niquim ou peixe-sapo, que vive em águas salobras (encontro de mar com rio). Hoje, as pesquisas também abrangem o bagre (animal marinho e de água doce) e o peixe-escorpião (marinho), presentes em quase todas as regiões do Brasil, e a arraia (marinho e de água doce), comum na região norte. A produção de um único soro para neutralizar o veneno de todos esses peixes é uma das possibilidades em verificação.

Os estudos sobre peixes peçonhentos colocam o Brasil entre os pioneiros no tema. Em todo o mundo, apenas a Austrália desenvolve soro para veneno de peixe. Lá, os acidentes causados pelo stone-fish (peixe-pedra), do mesmo gênero do peixe-escorpião, comum no Oceano Índico, são tratados com soro.

A previsão é que o soro leve cerca de um ano para começar a ser usado em clínicas. Isso porque depende da avaliação e autorização de um comitê médico. E precisará de mais dois anos para se tornar um soro comercial.

“O Instituto Butantan acompanha o desenvolvimento científico internacional e incorpora métodos modernos para melhorar cada vez mais a produção de imunobiológicos, atividades biotecnológicas e técnicas de engenharia genética”, afirma o governador Geraldo Alckmin.

O Instituto Butantan, mesmo sem ter ainda o soro em escala comercial, já é referência para países como a Venezuela. Sem condições de produzir um soro que neutralize os efeitos do veneno do Thalassophryne maculosa, um peixe do mesmo gênero do niquim que causa muitos acidentes principalmente em turistas, pesquisadores venezuelanos já procuram o Instituto.

De acordo com a bióloga Mônica Lopes Ferreira, que coordena os estudos sobre peixes peçonhentos no Butantan, embora os peixes sejam de espécies diferentes, o soro para o niquim também se mostrou eficiente contra os efeitos causados pelo Thalassophryne maculosa. ‘É um soro que poderá ser utilizado no Brasil e na Venezuela’, diz.

Niquim não mata mas pode aleijar

Os estudos com o peixe niquim começaram em 1996, a partir da tese de mestrado da bióloga Mônica Lopes Ferreira. Natural de Maceió, ela era bolsista da Fapesp no Instituto Butantan e estava pronta a estudar a doença de Chagas no mestrado. O conhecimento de um peixe peçonhento, o niquim, que causava acidentes (ferimentos) graves que não conseguiam ser solucionados com medicamentos, porém mudaram os rumos dos estudos da pesquisadora. ‘É um peixe que não mata, mas pode aleijar’, explica. Ela conta que no nordeste do país é conhecido como ‘veneno do mar’.

Desde o início da pesquisa, a bióloga contou com apoio de médicos de Alagoas. Eles auxiliaram tanto na coleta de informações sobre o niquim, quanto de pessoas pessoas acidentadas com o peixe.

O niquim vive principalmente em águas salobras, comum em regiões onde há encontro de águas marítimas e fluviais. Tem aproximadamente 15 centímetros de comprimento, é mais largo na altura das nadadeiras peitorais, mais fino na parte de trás e não tem escamas, mas é coberto por muco. Costuma enterrar parte do corpo na areia, em águas rasas e é bastante resistente. Chega a ficar de oito a 12 horas fora da água. Por sua coloração acinzentada, é comum ser confundido com a areia. Possui dois espinhos na região dorsal e um em cada lateral, recobertos por uma glândula de veneno. Esses espinhos são vazados e quando o peixe sofre pressão, como por exemplo no momento em que é pisado por um pescador, a glândula desce e o veneno é liberado pelo espinho. “É como se ele aplicasse uma injeção”, afirma a bióloga.

A gravidade do ferimento varia de acordo com a quantidade de veneno liberada. Além de fortes dores, causa edemas, bolhas e até necroses no membro atingido. “As dores e os edemas são imediatos. Já a necrose, dependendo da quantidade de veneno, pode ocorrer em 24 horas”, explica Ferreira. Ela diz que a necrose pode levar a hipertrofia muscular e perda da função. Em alguns casos, é necessário até realizar enxertos.

A pesquisadora conta que os catadores de marisco no nordeste são muito atingidos pelo peixe. “Famílias inteiras cavam a areia para catar marisco e é comum encontrar pessoas sem um dedo da mão ou do pé por causa do niquim. Eles chegam a ficar meses sem poder voltar ao trabalho por causa dos ferimentos”, afirma.

Mesmo quando a pessoa ferida pelo peixe toma todos os medicamentos (antiinflamatórios e antibióticos) disponíveis, o edema persiste por longos períodos. “Verificamos experimentalmente no laboratório que esses ferimentos realmente não respondem bem a medicamentos. Após essa constatação, iniciamos os experimentos para a produção do soro no Instituto Butantan”, destaca Ferreira.

A bióloga ressalta que não é possível saber exatamente qual a incidência de ferimentos causados por niquim no Brasil, uma vez que os médicos não costumam registrar acidentes com peixes. “As pessoas estão muito voltadas a acidentes com cobras, aranhas e escorpiões, mas esquecem do mundo aquático. Quando um paciente chega ao hospital e informa que o ferimento foi causado por peixe, o médico não coloca na ficha qual foi o peixe, onde ocorreu o acidente e quanto tempo depois o paciente procurou atendimento”, afirma.

Para que seja possível fazer uma estatística, ela destaca que, desde o início dos estudos sobre o niquim, está realizando uma campanha junto aos médicos da região nordeste do país para que façam um protocolo desses atendimentos.

Ela lembra porém que, no ano passado, um único médico de Alagoas, o doutor Luís Alberto Fonseca, professor de dermatologia na Faculdade de Ciências Médicas em Maceió e colabora com a bióloga do Butantan nas pesquisas, registrou 70 pacientes feridos por niquim em seu consultório, no período de seis meses. “É um peixe muito comum”, diz Ferreira. A bióloga afirma que utiliza cerca de 30 a 40 peixes em seus experimentos e que eles são colhidos em apenas uma tarde, em qualquer época do ano.

Bagre é o peixe que mais causa acidentes

De acordo com a pesquisadora Mônica Ferreira, a maior incidência de acidentes com peixes peçonhentos no Brasil se dá com o bagre. Comestível e comum no país inteiro, o bagre causa acidentes principalmente em pescadores. Os ferimentos, porém, são mais leves que os causados por niquim. Causam muita dor e edemas, mas não chegam a provocar necroses.

Já as arraias, comuns no norte do país, são bastante perigosas. Comuns tanto em águas pluviais quanto marinhas, as arraias têm um ferrão na cauda capaz de provocar edemas, hemorragias e necroses. “Se não tivesse o veneno, a arraia já causaria ferimentos graves”, diz a pesquisadora. Isso porque o animal, quando se sente ameaçado, usa a cauda, que é como um chicote, grande e serrilhado, causando cortes semelhantes ao de uma faca. “Esse quadro se agrava com a presença do veneno”, explica.

Peixe-escorpião pode levar à morte

Considerado o pior dos peixes peçonhentos, o peixe-escorpião é capaz até de levar à morte. Isso porque além dos ferimentos locais, também pode causar efeitos sistêmicos, ou seja, afetar coração, pulmão e rins. A gravidade do acidente depende da quantidade de veneno inoculada. Cada espinho libera grande quantidade de veneno e os ferimentos com mais de três espinhos são considerados muito graves. Podem causar taquicardia, dispnéia (dificuldade de respiração), convulsões e morte.

O peixe-escorpião tem 13 espinhos no dorso, dois anais e dois caudais. Diferente dos outros, vive em águas profundas do oceano e atinge principalmente mergulhadores e pescadores de camarão. Está presente em todas as regiões do país. “Ele se parece um pouco com uma pedra e costuma ficar próximo a corais”, alerta a pesquisadora.

De acordo com Ferreira, os estudos com esse peixe estão voltados para os efeitos sistêmicos. “Nossa preocupação é desvendar um pouco do veneno para chegar a um tratamento. Se tomarmos como exemplo o que ocorre na Austrália, com o peixe-pedra, também precisaremos desenvolver um soro para o peixe-escorpião”, afirma.

Ela explica que antes de desenvolver soro para esses três peixes, o bagre, a arraia e o peixe-escorpião, é preciso ter certeza de que não há medicamentos capazes de resolver o problema já disponíveis, uma vez que as pesquisas estão em fase inicial. Isso porque a produção de soro é muito cara.

Veneno do bem

Além de desvendar o que o veneno dos peixes causa nos seres humanos e produzir um soro que neutralize esses efeitos, a pesquisadora também estuda a seqüência do veneno (o DNA). De acordo com Mônica Ferreira, nesse estudo, o objetivo é olhar o veneno como uma ferramenta. Ou seja, encontrar soluções para problemas de saúde que nada tenham a ver com o peixe, a partir do mecanismo do veneno.

Na opinião da bióloga, será possível tirar toxinas desses venenos que serão ferramentas para algumas patologias. “O veneno do niquim, por exemplo, tem uma atividade como se fosse um antiinflamatório. O que será que ele tem ali que não deixa causar inflamação? Isso pode ser uma coisa boa”, afirma.

A pesquisadora informa que descobriu no veneno do niquim uma família de proteínas inédita. O desafio agora é isolar essas proteínas e avaliá-las como ferramentas para estudar um sistema ligado a inflamações, que está presente em diversas patologias.

Outro objeto de estudo é o muco que recobre o corpo tanto do niquim quanto do bagre e da arraia. A substância possui ação antimicrobiante que, no futuro, pode servir para desenvolver medicamentos ou entender melhor mecanismo de uma proteção contra bactérias.

“O mundo marinho é pouco conhecido e a costa do Brasil vai de ponta a ponta. Tem muita coisa a ser estudada que vão nos trazer surpresas e novidades. Estamos começando. Vem muita coisa pela frente ainda”, acredita Mônica Ferreira.

  • Saiba como é produzido o soro para veneno de peixes peçonhentos

    Cíntia Cury