Serra participa do lançamento do Instituto Vladimir Herzog

São Paulo, 25 de junho de 2009

qui, 25/06/2009 - 23h00 | Do Portal do Governo

Governador José Serra: Queria dar aqui o meu boa noite a todos e a todas. Cumprimentar a Clarice (Herzog) e, através dela, toda a sua família. Queria saudar também Dom Odilo (Scherer, Arcebispo Metropolitano de São Paulo), que representa aqui nosso querido Dom Paulo (Evaristo Arns), e o rabino Henry Sobel. Queria cumprimentar o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanuchi; o vice-governador Alberto Goldman; o ministro José Gregori, que é secretário Especial dos Direitos Humanos da cidade de São Paulo; o José Augusto (Camargo), que é presidente do Sindicato dos Jornalistas (Profissionais de São Paulo); o Paulo Markun, que é presidente da Fundação Padre Anchieta, na qual Vladimir (Herzog) trabalhava. Queria cumprimentar os secretários de Estado aqui presentes através do Luiz Antonio Marrey, secretário da Justiça e Defesa da Cidadania (de São Paulo). Queria dar o meu abraço ao amigo querido Fernando Pacheco Jordão. Cumprimentar também o nosso Roberto Freire; o Milton Flávio, deputado estadual, e através do Milton queria cumprimentar os deputados presentes. Queria saudar também a nossa querida (atriz) Eva Wilma; a Sonia Francine, subprefeita da Lapa; o Martinho Lutero, regente do coral Luther King, em nome de quem cumprimento todos os integrantes do coral; jornalistas, estudantes, membros de entidades do governo e não-governamentais de defesa dos direitos humanos.

Eu fiz questão de preparar uma fala a respeito da criação deste Instituto, que representasse ao mesmo tempo uma visão do Governo de São Paulo a respeito da pessoa e do papel que teve na nossa história o Vladimir Herzog. Algo como uma espécie de documento do Governo de São Paulo. Esta cerimônia é um ato, na verdade, voltado para o futuro, testemunho de uma vontade de contribuir para o que há de melhor neste País. É um momento em que reverenciamos a memória do Vladimir Herzog, o Vlado, como era conhecido por seus amigos – eu nunca o conheci – associando ao futuro esse empreendimento e pretendendo marcá-lo com seu nome e, mais ainda, com sua presença. O que este instituto virá a ser no futuro não depende do passado, mas sim do que os seus organizadores e futuros colaboradores vierem a fazer. Eu creio, espero mesmo, que o nome do Vlado sirva como fonte de inspiração para coisas boas, construtivas, como estímulo para ideias inovadoras e boas iniciativas.

Além de razões pessoais de seus amigos e familiares, evidentemente, reverenciar a memória do Vladimir Herzog se justifica por motivos políticos e por motivos morais. Do ponto de vista político, sua morte nas mãos do aparelho repressor do regime militar foi o marco decisivo no processo de distensão então desencadeado pelo general (Ernesto) Geisel (ex-presidente da República), pois provocou uma confrontação decisiva com os setores mais duros do regime, que resistiam a qualquer forma, por mínima que fosse, de liberalização: a chamada abertura lenta, gradual e segura, anunciada pelo governo militar, que acabava de começar.

Não é à toa, aliás, que vários presos daquele período ouviram dentro do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) a afirmação de que o objetivo da ação repressiva era identificar e derrubar autoridades supostamente condescendentes com a ação subversiva ao patrocinar pequenos gestos liberais, como a nomeação do próprio Vlado para a direção de jornalismo da TV Cultura (de São Paulo). Por certo, as coisas depois não mudaram de um dia para o outro, as detenções arbitrárias continuaram, as agressões de tortura contra detidos políticos também, e prosseguiram os assassinatos – outros assassinatos, inclusive em 1976, mais de um ano depois, em torno daquela famosa reunião de dirigentes do PC do B (Partido Comunista do Brasil) no bairro da Lapa (em São Paulo).

Mas o fato é que o enorme contingente ajudou a quebrar a espinha dos setores mais radicais do regime e, assim, dar prosseguimento ao lento processo da abertura programada. O clamor provocado pela morte do Vlado foi também o marco, talvez o mais importante ao lado das eleições de (19)74, na mudança da forma de expressão política da sociedade, até então presa em uma espécie de armadilha. A despolitização, o controle estrito da ação partidária, das manifestações de opiniões e das lutas reivindicatórias parecia deixar espaço apenas para o conformismo, a omissão, ou para a ação política de contestação frontal clandestina ao regime. Mas a reação da sociedade (em conseqüência da morte de Vladimir Herzog), que teve na presença de muitos, de tanta gente no enterro e no culto ecumênico na Praça da Sé, o seu primeiro grande ato público, mostrou que era possível fazer oposição e defender a democracia de modo pacífico, quase silencioso, como exigia o sentimento de luto – mas ao mesmo tempo (uma oposição) corajosa, firme, clara nos princípios que defendia e na condenação a qualquer forma de violência como instrumento da ação política.

E esse marco de resistência contra a ditadura na luta pela redemocratização deve muito à pessoa de Vladimir Herzog, à sua figura moral. A tortura e assassinato não se justificam em nenhum caso. Mas o choque provocado pela morte do Vlado foi ainda maior, porque ele não era um combatente clandestino, armado e pronto para a confrontação. Não era uma ameaça nesse sentido, por mínima que fosse, para os seus algozes. Era um jornalista, alguém que atuava abertamente por meio da palavra, que fora detido quando exercia um cargo de confiança do então secretário da Cultura do Estado, José Mindlin – ou, talvez exatamente por isso, foi encarado como um perigo para a ditadura.

Era um homem, segundo todos os testemunhos que eu tenho, do Markun, do Goldman e de tanta gente, afável, de modos tranqüilos, quase sempre sorridente. Não tinha nada de agitador, do polemista, de líder autoritário. Isto acabou elevando a repulsa moral ao regime. Não havia mais recuo possível. Se o Vlado tinha morrido vítima da repressão, ninguém poderia se sentir seguro, pois não havia limites para a violência da ditadura. O ato na Sé mostrou que havia espaço para uma oposição moral, intelectual e política ao regime militar – e que essa oposição expressava os sentimentos da imensa maioria, e que seria tanto mais eficaz quanto mais ampla e mais pacífica, superando as divisões ideológicas sem perder a firmeza e a clareza do objetivo comum: a volta à democracia.

O culto e o enterro foram atos de serena coragem, de superioridade moral da sociedade civil sobre um regime antidemocrático e cruel. O movimento que levaria a ditadura a sucessivas derrotas eleitorais, ao ressurgimento da luta sindical e, finalmente, à campanha das Diretas e à eleição de Tancredo Neves. Para não dizer da própria anistia, da qual eu fui um dos beneficiários depois de 14 anos de exílio. Aliás, o sucesso eleitoral da oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro, antecessor do atual PMDB), nas eleições de 74, é preciso ter claro isso, havia sido o fator desencadeante da ofensiva dos setores mais radicais do regime sobre as forças que, dentro da oposição, pregavam a participação ativa nas campanhas eleitorais, apesar das intimidações e das limitações às liberdades de palavra.

Uma grande parte da oposição, mais militante, era inclusive contrária à participação nas eleições, na perspectiva de que a única saída era o enfrentamento, era um confronto, algo frontal contra a ditadura. Mas havia forças que defendiam a exploração das possibilidades democráticas das eleições então existentes. E, dado os resultados de 1974, passaram a ser essas forças o alvo principal dos ataques dos setores mais radicais da ditadura. A vítima maior desse momento foi o Partido Comunista Brasileiro, o PCB, que não pregava a luta armada, que teve muito dos seus militantes presos, torturados e assassinados. Alguns, quero dizer aqui, amigos meus, próximos, pessoais.

A memória de Vlado certamente estava nas mentes de muitos dos que levaram adiante, a partir daí, a luta democrática. Sobretudo, anonimamente. Mesmo porque ele já estava engajado, intelectual e profissionalmente, naquela mesma direção. Vale lembrar aqui uma frase escrita por ele numa reportagem que investigou o clima reinante no mundo da cultura, no início da década de 70. Vale a pena ler o que dizia ele. Abro aspas: “O mergulho nas trevas do lamento e da impotência foi tão profundo que alguns se perderam pelos subterrâneos, ficaram na margem ou escolheram as viagens permanentes. Mas muitos cansaram de lamentar, talvez com medo de se tornarem tristes heróis de uma guerra acabada. Estão voltando a querer, isto é, estão recuperando a vontade para voltar a fazer apesar de tudo”. Isso é o que dizia o nosso Vlado, e voltou a fazer antes mesmo de aceitar colaborar na Secretaria da Cultura.

No início de 1975, foi convidado para ser uma espécie de editor, em São Paulo, do jornal Opinião, que foi tão fundamental para a redemocratização brasileira nos anos 70, para as lutas da redemocratização. Era um semanário criado no Rio de Janeiro pelo Fernando Gasparian, com apoio de várias lideranças intelectuais, especialmente a de Fernando Henrique Cardoso. Naquele momento, o eixo de renovação da liderança política e da efervescência da sociedade civil, inclusive do movimento sindical e das primeiras organizações de bairro, tinha se transferido para São Paulo. Vlado passou a se reunir semanalmente com um grupo de colaboradores, para estabelecer uma pauta de temas que a grande imprensa, ainda sob censura, tinha dificuldades em abordar. Os mais assíduos, como José Augusto Guilhon (Albuquerque), Francisco Weffort, José Álvaro Moisés, revezavam-se com Fernando Henrique para publicar, toda semana, editoriais assinados sobre o foco da conjuntura. As reuniões eram na antiga sede do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), na rua Bahia, que chegou, em outros momentos, a ser palco de atentados. E que teve alguns de seus pesquisadores detidos, encapuzados e torturados.

O Opinião estava aberto a todas as correntes da oposição e defendia os resultados da eleição de 74 como um fator decisivo no processo de redemocratização futura. Mutilado pela censura, ainda assim conseguia publicar o que a grande imprensa não queria, ou não podia divulgar. Mas para enfrentar a censura não adiantava só se lamentar, ainda que fosse preciso usar de algum contorcionismo sintático. Vlado encarava o desafio com bom humor e tranqüilidade – é o testemunho que eu tenho. Hesitou, mas não recusou, diante do convite para dirigir o jornalismo da TV Cultura, onde certamente imaginava continuar jogando aquele jogo em favor da democracia e liberdade. Foi substituído no jornal por Paulo Markun, na época um jovem franzino e, pelo que eu vi nas fotos, dono do maior bigode relativo com o tamanho do rosto que eu vi na minha vida. Eu disse isso a ele, ele concordou, de maneira que não pode ser encarado como um reparo. Aliás, o Markun era pouco mais que um menino, e ficou muito marcado por este emprego. Ele sabe tudo sobre o Vlado. Eu aprendi com ele, inclusive, o que eu tive de comum com o Vlado, além da tendência à calva. Ele (o Vlado), como eu, era filho de imigrantes. Ele mesmo, um imigrante. Seu pai tinha um armazém, como o meu pai. Na Europa, viviam (a família Herzog) onde hoje é a Bósnia, mas durante a guerra fugiram para a Itália. Vlado virou Aldo, e se passava por italiano, língua que ele dominou rapidamente, certamente muitíssimo melhor do que eu e, com isso, na prática, se tornou um imigrante italiano a mais quando chegou ao Rio e, depois, a São Paulo.

Em São Paulo, estudou no Roosevelt, alguns anos antes de mim. Eu só não sei na verdade, eu me esqueci de perguntar, para que time ele torcia. Eu não quero nem saber. Palmeiras? Já é demais. Ele gostava sobretudo de cinema, literatura, música e teatro, como eu. O teatro era uma paixão tão grande que o Vlado arranjou um lugar de figurante, como soldado romano, para assistir de graça às apresentações no Teatro Municipal. Devo dizer que eu também fiz incursões inconfessáveis na área do teatro, cheguei até a ser diretor na Politécnica (Escola Politécnica da USP – Universidade de São Paulo). Seu sonho era ser crítico de cinema, ou melhor, cineasta, como eu, para retratar a saga de Canudos, sob o título “Antonio Conselheiro”.

Nos idos de (19)75, havia algo sim de subversivo, no bom sentido da palavra, quando um jornalista assumia a direção dos jornais da (TV) Cultura com a seguinte meta – e aqui vou ler palavras do próprio Vlado, que apesar de tímido, como me disse o Goldman, que o conheceu bem, era um homem arrojado. Dizia ele: “Um telejornal de emissora de governo também pode ser um bom jornal, e para isso não é preciso esquecer que se trata de emissora do governo. Basta não adotar uma atitude servil”. Vlado ficou menos de dois meses na chefia do Departamento de Jornalismo do Canal 2, e não conseguiu implementar seu projeto. Sua gestão foi bombardeada desde o primeiro dia por colunistas áulicos e parlamentares a serviço da extrema direita, agindo como propulsores do conflito nos porões da ditadura, que visava contestar a política de abertura do então presidente Geisel. E Vlado acabou se tornando o elo mais fraco desta cadeia.

Foi detido e morto estupidamente na prisão. Ele, que escapou da guerra, um judeu que sobreviveu às perseguições nazistas e migrou para um país livre. Mas sua morte não foi o seu fim. Ele viveu na redemocratização e, depois de 34 anos, continua vivendo na nossa memória – a prova é esta noite. Eu, na época de estudante, nos primeiros anos de militância política, aprendi uma consideração a respeito do presente: era ver o presente como futuro. Isso é que dá sentido a uma militância política bastante intensa, bastante agressiva: encarar o presente como historia, e nós estamos fazendo história.

Ao longo dos anos aprendi outra coisa, e a noite de hoje é uma demonstração: que o passado sempre erra, e teima em se colocar junto ao presente. O passado, na verdade, nos trás ao presente, nos ajuda a entender o presente. Por isso, depois de 34 anos, ele (o Vlado) continua vivendo na nossa memória, e continuará com mais razão, na medida em que esse Instituto for dando os seus frutos.

Que seus amigos diretos, e seus amigos indiretos, como eu, saibam fazer prevalecer em nosso País padrões de desempenho que, infelizmente, ainda são escassos entre nós: a tolerância e o respeito na convivência política, o respeito intransigente aos direitos humanos individuais, a clareza e a coerência nas propostas e, sobretudo, entre as propostas e as ações práticas, o mínimo de caráter na militância política e social, uma visão de médio e longo prazo para o nosso País, que mire as suas particularidades e seus grandes interesses – porque o País tem interesses que são os interesses da sociedade, e hoje essa consideração parece até subversiva. Que privilegiem não apenas grandes performances nos discursos, na comunicação, mas também que as praticas não teimem em contradizer ponto por ponto aquilo que se prega, aquilo que se diz, aquilo que se alardeia.

Para este Instituto, desejo toda a sorte do mundo. Porque a sorte do Instituto fará bem a todos nós. E quero me colocar à disposição como governador de São Paulo e, mais adiante, quando eu não for mais o governador, para que o Instituto se fortaleça e cumpra o papel que a sua família, que os seus amigos definiram.

Conte comigo, Clarice. E contem todos os amigos diretos do Vladimir e indiretos, meus colegas.

Muito obrigado!

Homenagens ao rabino Henry Sobel e ao reverendo James Wright realizadas na mesma cerimônia

Governador José Serra: Com alegria e emoção, eu quero entregar esse troféu especial ao rabino Henry Sobel. E vou fazer questão aqui de transmitir um trecho do que disse o nosso rabino no dia da missa da Sé (quando morreu Vladimir Herzog). Abro aspas: “Sou rabino e estou aqui porque um judeu morreu. Porém, mais importante ainda, estou aqui nessa catedral porque um homem morreu. E, como rabino, eu não defendo apenas os direitos dos judeus, mas os direitos fundamentais de todos os seres humanos, de todos os credos e de todas as raças. Vivam eles no Brasil ou em qualquer país do mundo”. Esse é o Henry Sobel.

Eu queria chamar aqui o Décio Laurente, amigo da família do reverendo James Wright. Quero dizer que eu tenho um episódio pessoal, que me envolveu muito com o reverendo James Wright, porque ele era irmão do Paulo Wright. O Paulo Wright era um deputado estadual de Santa Catarina, que eu conheci na época anterior ao golpe, que eu mesmo, entre aspas, recrutei para a militância política, e que é um dos desaparecidos em 1973, morto sob as priores condições de tortura. Inclusive, estive recentemente em um evento muito oportuno realizado pelo Paulo Vanuchi em Florianópolis, para participar da homenagem que foi feita a ele (Paulo Wright) na Assembléia (Legislativa). Na época, a ditadura mandou cassá-lo. Como não tinha motivo para cassar o Paulo Wright, a razão exposta foi que ele ia sem gravata ao plenário, para que se tenha uma ideia dos tempos que nós vivíamos naquela época.

Portanto, na verdade, esta homenagem ao James Wright, com esta escultura do Elifas Andreato, que é chamada “Vlado Vitorioso”, para mim tem esse significado duplo: além de representar a família nesta entrega, ela tem também um significado pessoal muito especial.