Serra discursa em homenagem a Ruth Cardoso

São Paulo, 2 de julho de 2009

qui, 02/07/2009 - 23h00 | Do Portal do Governo

Governador José Serra: Eu vim aqui hoje com muita satisfação. Estou um pouco preocupado, porque fazer um encerramento pressupõe saber tudo aquilo que foi dito e debatido durante o dia. Eu posso apenas imaginar, mas não pude, infelizmente, aproveitar as diversas partes do seminário.

Recentemente nós tivemos um seminário em Nova Iorque. E queria apenas abordar alguns dos tópicos que abordei naquele seminário. Um primeiro aspecto, que deve ter sido muito mencionado aqui, foi o que aconteceu naquele momento em que nós perdemos a Ruth (Cardoso). Por todo o Brasil houve manifestações de pêsames, orações, homenagens, a quê? A seu senso de reserva, sua dignidade, integridade intelectual e solidariedade. São virtudes cada vez mais escassas no nosso País. Sem apresentar qualquer visão pessimista a respeito do presente e do futuro, sem dúvida não são virtudes que sobram no Brasil de hoje.

Ela representou sempre um modelo incomum. Especialmente (se) comparada aos heróis da nossa cultura, admirados pela capacidade de enganar, de ser espertos, de tirar vantagem de tudo e de todos. Algo que foi muito bem retratado num herói sem nenhum caráter – o Macunaíma, do Mário de Andrade. A Ruth era exatamente o cinético do recíproco disso. E, como primeira-dama, ela optou por não se imiscuir no Governo, não presidir iniciativas politicamente corretas de paternalismo, não adotar o modelo “mãe dos pobres”. Nem combinaria com ela, também.

E ela, digamos, só para simplificar, nunca procurou ser admirada carismaticamente ao estilo da política argentina. Nem tentou exercer uma influência maternal como algumas das suas predecessoras. Não era afeita à política, para não dizer que tinha horror, não se acanhava em dizê-lo e falava isso com sinceridade. Mas batalhava para mudar as coisas. Não através da ação política tradicional, mas por meio de políticas públicas inovadoras – é isso que eu acho que é a essência do trabalho da Ruth. Não era fazer política, como se concebe normalmente, mas procurando concretizar políticas públicas inovadoras.

Ela estava baseada na experiência de ensino dela – e, sem dúvida nenhuma, esse é o ponto de partida. Na verdade, a eleição do Fernando Henrique abriu a oportunidade para (ela) participar da vida pública, numa nova dimensão. E é importante nós entendermos o contexto em que isso aconteceu. Era um contexto, em (19)94-(19)95, marcado por dois tipos de clivagens: um, entre Estado e sociedade; outro, entre mudança e ruptura. Isso é muito importante, até para entender o que aconteceu nos anos subsequentes, depois do governo Fernando Henrique (Cardoso).

Uma visão opunha o Estado e a sociedade, o mal contra o bem. E isto vinha da época da ditadura, em que efetivamente houve essa identificação. Tudo que vinha do Estado era ruim, e o que vinha da sociedade era bom. Acontece que esse tipo de visão penetrou na fase democrática, se manteve de alguma maneira. Na época da ditadura, era uma clivagem conveniente, do ponto de vista político. A sociedade civil portadora da verdade, das coisas boas, das virtudes, e o Estado portador de todos os defeitos que se poderia imaginar.

Uma outra (clivagem) interessante, é a idéia da mudança e da ruptura. Mudança gradual, cumulativa, era considerada uma enganação. Mudança verdadeira era a da ruptura. Ruptura… tem que romper… o que exatamente não é fácil identificar na prática. Mas, em princípio, toda política gradualista, de mudanças parciais, seria uma enganação com relação ao País. Esse era um contexto, isso penetrou no governo Fernando Henrique. A meu ver foi, de alguma maneira, o problema mais sério enfrentado naqueles anos. Tanto que eu cheguei a dizer que a principal diferença entre os dois períodos – não que não tenha havido – não foi na política econômica, nas políticas sociais, embora existam, mas fundamentalmente em relação ao clima intelectual.

É importante entender isso, porque o trabalho da Ruth estava voltado à não aceitação dessas duas clivagens. Ou seja: não vê estado e sociedade como opostos, nem considera mudanças graduais, sólidas, como ilegítimas e opostas a mudanças mais profundas. Muito pelo contrário. Eu creio que este é o aspecto central que norteou o trabalho que ela desenvolveu, e que é útil hoje em dia levar isso em conta, inclusive para entender o que aconteceu.

Ela sempre manteve um certo otimismo, mesmo em um período recente em relação à sociedade. Nas palavras dela: “Mais aberta do que nunca, diversa e engajada, mesmo agora”. E este era o elemento essencial para nós trabalharmos com políticas públicas, que conduzissem à mudança.

É interessante termos presente que esta questão de mudança e ruptura pode ser assimilada a uma categoria formulada pelo (Albert) Hirschmann, num livro que ele tem sobre duzentos anos de retórica reacionária, que identifica três tipos de atitudes em relação às mudanças existentes, criticando o pensamento reacionário. Uma delas é a da futilidade. Quer dizer: mudanças que na verdade são feitas e não levam a nada. Análises que se fazem a respeito de Revolução Francesa, muitas coisas dessa natureza. Na verdade, a mudança é fútil, acontece aquilo que teria que acontecer.

Mas ele estava olhando o pensamento reacionário. Aqui, no caso, era o pensamento de esquerda. Ou seja: a mudança é fútil – é só a ruptura que vale. É interessante fazer esse novo enfoque. Quer dizer, enfocar desde desse ângulo, um conservadorismo com outro sinal, simétrico ao existente. E, de alguma maneira, tudo isso acabou com a eleição do Lula.

Por que isso tudo foi deixado de lado? Houve uma autocrítica com relação a esse tipo de visão. Não dessa maneira que eu estou falando, mas na prática. E, na verdade, o governo Lula tem perseguido mudanças também graduais. O pessoal da ruptura ficou no PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e no MST (Movimento dos Sem-Terra), até certo ponto, e numa parte da igreja que se desengajou do governo e que, de alguma maneira, pode estar presente num desses dois movimentos ou partidos.

E não só passou a não se identificar mais oposição entre Estado e sociedade, como também passou a se ver o contrário. Agora, de repente, no Estado há toda virtude – e a sociedade é naturalmente virtuosa, como sempre. Quando não, é incômoda em algumas circunstâncias.

Eu acho interessante isso, como linha para ser explorada, e também para situar o contexto do trabalho da Ruth, que tinha uma visão absolutamente crítica e oposta a esta que eu estou apresentando. Aqui, na verdade, prevalecia no ambiente intelectual no nosso País, e eu acho que essas questões intelectuais de visão etc, têm uma importância enorme.

É claro que, através da sua maneira naturalmente discreta, a Ruth tinha reservas com relação ao destino das políticas sociais após 2002. Não por causa de objetivos, ou dos problemas existentes, mas devido a um crescente paternalismo, atenuação ou diminuição das condições de elegibilidade dos programas, favorecimento de partidos por meio da manipulação de movimentos sociais, e a recentralização de muitas iniciativas para a esfera federal. Se nós pegarmos os números, eles são bastante contundentes nesse sentido, de mostrar um movimento curioso de recentralização. Eu acho que esses eram os quatro pontos principais, que a gente foi identificando, que ela costumava dizer a esse respeito.

Mas como eu disse… mesmo diante desses problemas ela tinha um otimismo, porque estava convencida de que a presença da sociedade civil na esfera pública crescia, e não diminuía. E o capital social, como se denominava, estava em ascensão. É aquilo que eu disse, das palavras dela – a sociedade brasileira continua mais aberta, diversa, engajada do que nunca, com uma riqueza de experiências acumuladas por cidadãos, organizações não-governamentais e mesmo por esferas do poder público.

É evidente que a Ruth desempenhou um papel relevante neste processo, e exerceu uma influência intelectual grande durante os seus anos à frente da Comunidade Solidária (programa social do governo Fernando Henrique Cardoso). Mas a gente podia dizer aqui – eu imagino que já foi dito – dos muitos anos que (a Ruth Cardoso) se dedicou em preparar jovens intelectuais com uma espécie de senso de responsabilidade pública, digamos assim. E influenciou, inclusive, uma geração da qual eu faço parte. Eu sempre estive muito envolvido com a política econômica, seja como deputado, secretário, ministro, articulista… Mas a Ruth, eu me lembro que em 1998, pouco mais de 11 anos atrás, teve um papel decisivo para me convencer a me engajar em políticas sociais, na época, como Ministro da Saúde. Uma decisão de que, evidentemente, eu nunca me arrependi e que sempre vou lembrar com orgulho.

E como eu disse lá em Nova Iorque e repito aqui: uma coisa que sempre vou guardar na memória foi a alegria dela na minha cerimônia de posse, na época.

É isso, muito obrigado!