As afinidades eletivas no mundo da arte: Léger e o Brasil de Tarsila

04/04/2009 Estado de S. Paulo

qui, 30/04/2009 - 19h40 | Do Portal do Governo

Ao abrir o Ano da França no Brasil, a exposição de Fernand Léger (1881-1955), Amizades e Relações Brasileiras, promete ser uma das principais atrações desse recheado calendário. Não apenas porque apresenta um seleto conjunto de obras do mestre francês, realizadas entre as décadas de 20 e 50, mas sobretudo porque contextualiza sua arte à cena brasileira, evidenciando os fortes nexos que se estabelecem entre ele e o modernismo nacional. Como afirma Brigitte Hedel-Samson, conservadora-chefe do Museu National Fernand Léger, em Biot (França) e curadora da exposição, esse desejo de realizar uma mostra que desse conta dessa relação entre Léger e o Brasil é antiga.

De maneira simplificadora, costuma-se atribuir o papel representado por Léger nessa história ao fato de Tarsila do Amaral ter frequentado seu ateliê quando esteve em Paris no início da década de 20 e descobriu o cubismo, fazendo o que Mário de Andrade viria a chamar de “serviço militar obrigatório”, posto que todo artista que se queria moderno teria obrigatoriamente de saber pintar à moda da Escola de Paris. Acontece que quando Tarsila desembarca em Paris em 1923 e conhece Léger por intermédio de Blaise Cendrars (o poeta era grande amigo do pintor e um importante amigo dos brasileiros na capital francesa), Léger já havia abandonado a representação cubista.

Em sua obra desse período, destaca Brigitte, “há uma grande unidade de estilo”. O tema é pretexto para uma simples valorização das formas, diz ela, afirmando que “Tarsila adotou essa maneira muito característica de Léger de construir por planos coloridos”. A pintora teria contribuído por sua vez muito provavelmente com a sugestão de iconografias não-europeias, utilizadas em trabalhos como o balé A Criação do Mundo. Brigitte acredita até mesmo que ela tenha ajudado a financiar o filme Balé Mecânico e tenha ganho a peça Carlitos Cubista como uma espécie de retribuição.

Esses dados ilustram um outro aspecto interessante dessa exposição, que é o fato de ela não assumir uma direção de mão única. Se a convivência com Léger foi marcante para Tarsila e de certa forma levou-a a consolidar em pouco tempo um estilo bastante próprio, marcado pelo uso intenso da cor e por um fascínio pelo universo brasileiro, o convívio e a troca com os brasileiros também tiveram suas repercussões para a vida e a obra do francês.

Como diz Regina Teixeira de Barros, curadora adjunta da exposição, “Tarsila do Amaral foi quem mais se contagiou por suas ideias estéticas”. Mas não foi a única. Curiosamente, Léger manteve estreito contato com três das maiores artistas brasileiras do século 20: Tarsila, Maria Martins e Lygia Clark. Acredita-se que ele tenha conhecido Maria Martins ainda nos anos 30 a tendo reencontrado durante o período da guerra, quando se refugiou nos EUA, e teria até mesmo recorrido a ela em busca de auxílio para conseguir financiar o projeto de uma ópera. Provavelmente foi por intermédio da escultora que Léger participou com grande destaque das três primeiras Bienais de São Paulo. Na última delas chegou a ganhar o grande prêmio de pintura, morrendo logo após.

Com Lygia, que frequentou seu ateliê no início dos anos 50, a relação foi mais breve, mas segundo Regina o modelo de Léger estaria fortemente relacionado à série das Escadas que ela pinta no período. “Talvez o legado mais importante deixado pelo mestre francês para ambas tenha sido a liberdade para criar, a capacidade inventiva, que em Lygia despontou nos trabalhos neoconcretos e em Tarsila atingiu a maturidade nas pinturas e desenhos antropofágicos”, sintetiza Regina.

Vários também são os momentos de aproximação com instituições e colecionadores brasileiros, garantindo uma presença quase constante do artista em exposições relativas ao modernismo no País e algumas vezes resultando em aquisições importantes para as coleções brasileiras. Uma dessas obras, A Compoteira de Peras, que pertence ao Masp, infelizmente não foi cedida para a exposição.

A montagem da mostra, que privilegia afinidades entre as obras mais do que critérios cronológicos, procura evidenciar esse intercâmbio. Lá estão os quadros que Tarsila comprou ou ganhou dele, bem como uma bela tapeçaria feita a partir de desenhos elaborados por Léger para a decoração do Auditório que Niemeyer projetou para o Parque do Ibirapuera e que só se tornou realidade recentemente. O tapete foi tecido por iniciativa de sua mulher e hoje pertence ao Banco Itaú. A encomenda para a decoração do auditório, bem como outras exposições e trabalhos desenvolvidos por Léger em relação ao Brasil demonstram que – apesar de ele nunca ter estado por aqui – os nexos se mantiveram e talvez até se tenham fortalecido.

Ele desenvolveu, por exemplo, a pedido de Assis Chateaubriand e em parceria com o arquiteto André Bruyère, o projeto de uma luxuosa colônia para receber artistas brasileiros na Riviera Francesa, com dormitórios, cafés, piscinas e que nunca viu a luz do dia por seu custo exorbitante. Os desenhos, que pertencem ao MAC-USP, estão na exposição.

Ao mesmo tempo, paralelamente a esse forte cotejamento com o plano brasileiro, a exposição organizada pelo museu Léger com sede em Biot, na França, propõe por meio de obras cedidas por diversos museus e coleções particulares um apanhado da obra do artista em suas três últimas décadas de vida. Lá estão representados momentos importantes dessa trajetória, a começar pela projeção de Ballet Mecanique. Ao longo da mostra é possível ver um conjunto importante de naturezas-mortas, trabalhos em que se nota uma certa tendência ao surrealismo e até mesmo uma sala dedicada ao tema do circo, que lhe foi tão caro.